quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

As ruas....

A rua não é para aventureiros. Nem as madrugadas.  Muito menos as periferias. Começava a madrugada. A rua era um turbilhão de pessoas, sons, risos, suor, olhares misturados pelo álcool e a fumaça. A rua tem os seus encantos e mistérios para os aventureiros, pretensiosos, ingênuos ou idiotas. A rua é a Esfinge: “Decifra-me ou te devoro.” Vi alguns serem devorados – eu mesmo quase fui algumas vezes. A rua não tem mistérios. Ela é o campo de batalha que põem a prova teorias, ideologias, valores, praticas, grupos e indivíduos. A rua é o triunfo da realidade sobre a abstração. As sombras, becos, vielas ocultam, camuflam, dissimulam as criaturas – presas e predadores – e seduzem os incautos – encantam, deslumbram, repugnam, atemorizam.
A rua é sempre a mesma, por isso nada que vem dela me é estranho. Aquilo que avilta a moralista, sóbria e temerária burguesia, o que ela evita, ignora, despreza e teme: os excessos. Em Touros (RN) era o centro da cidade e o entorno. Eram os quiosques com os seus telões exibindo futebol ou forró - via de regra. O álcool, o churrasco e os locais, tudo em excesso.  Políticos, servidores públicos graduados, comerciantes, aposentados, pequenos empresários, os filhos da elite e classe media local compõem a clientela cativa desses  locais. Não é mais o lugar do homem comum, espécie antiga que insiste em viver. 
O álcool é o poligrafo mais antigo e eficaz que existe. Ele revela o caráter das pessoas. Ele expõem o crime, o pecado, a mentira, a ilusão. O diabo sempre se acompanha do seu secretário. O presunçoso do seu séquito de bajuladores, medíocres e interesseiros. O espolio do crime é a mesa farta e o apreço da ralé. A popularidade, respeito, admiração ele as empresta de Mamon. Por conveniência, ignorância ou covardia ele tem muitos cúmplices, porque a amizade envolve sentimentos mais elevados. 
Miguel "2 real" era apenas um jovem simples. Um inconveniente que orbitava ao redor das mesas - como uma mosca. Um inconveniente útil, digno de pena ou desprezo. Divertia ou incomodava, sempre uma coisa tolerada e/ou ignorada. Morava na rua, na praia, usando as jangadas e botes como abrigo. Ajudava os pescadores em troca de comida e uns trocados. Viciado em crack e álcool. Penosos vinte e oito anos. Nunca havia saído do RN e há muito não deixava Touros. Nunca me sentei a mesa dos políticos, nunca sequer dirigi-lhes a palavra, desviava o olhar porque sempre era observado - afinal, eu era o forasteiro. Em pouco tempo deixei de se-lo, não de observa-los. Sabia quem era o que, quem era aliado de quem. Identificava os cúmplices, os capatazes, os estafetas, os bajuladores, as ou os amantes, os jagunços. Miguel era só mais uma vítima desse sistema podre, hipócrita, depravado. Miguel vivia mas, nunca existiu. Não era ninguém, apenas uma criatura que anda e vaga. Ninguém jamais conversava com ele, criatura insignificante, sem passado, sem futuro, sem importância, sem nada a dizer. 
A politica tem coisas mais importantes com que se preocupar do que com pessoas, sobretudo, as mais vulneráveis e a margem como o Miguel. Os homens públicos tem interesses mais nobres e elevados tanto quanto aspirações; uma visão peculiar sobre a politica, a coisa publica e as suas finalidades. Eles são tudo menos homens públicos na acepção clássica da filosofia e ciência politica. Não passam de mercadores, lobbystas, especuladores, coronéis, oligarcas, mercenários, bandidos. A politica a exemplo da sociedade antes os ignora, quando não é mais possível os encarcera e por fim extermina. A minha companheira acompanhava e denunciava essa situação na administração com repulsa e indignação. 
Miguel se sentava a minha mesa. Conversávamos. Bebia e fumava comigo. Ficava a vontade e tranquilo. Cumprimentava-me na rua e a minha corajosa companheira, sempre a distancia e de maneira discreta e respeitosa. Causava espanto nos demais a minha atitude tanto quanto a sua postura, na medida em que era desumanizado pela sociedade há tempos - não passava de uma "coisa", um bicho que anda e fala, incapaz de atitudes civilizadas! Os presunçosos que se entretêm com as pessoas e os negócios são os civilizados - cortesões perdulários, distintos senhores depravados aspirantes a fidalgos - dados a formalidades, cerimonias,  extravagancias, frivolidades. A rua pertence ao povo, não são negócios e/ou lazer pra burguesia. A rua  não dorme e quando o povo despertar será o fim do pesadelo dos explorados e o incio para os opressores. 

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