sábado, 8 de março de 2014

Modernidade, desenvolvimento e tradição: teoria.

Nas ultimas duas décadas o empreendedorismo tornou-se a "pedra filosofal" do desemprego. Têm sido a resposta institucional as misérias do capitalismo e ao acirramento da crise econômica. Assim, mobilizam-se governos das mais variadas tendencias ideológicas na tentativa de propor alternativas para o enfrentamento da crise, do desemprego, da exclusão, da miséria, etc. Como se fosse possível, amenizar a exploração, suavizar a opressão, domesticar o capitalismo e enfrentar as suas contradições e consequências! Veleidades de quem se abstêm em superar o capitalismo, recusa a luta de classes e nega ou renega a revolução socialista. 

Schumpeter considerava o "empreendedorismo" uma das molas propulsoras do capitalismo, sendo capaz de renova-lo e revigora-lo. Retumbante tolice ou cinismo pretender vinculá-lo a um viés socialista ou progressista em termos de emancipação sob o ponto de vista da classe trabalhadora! O dito empreendedorismo, no contexto da primazia do capitalismo globalizado e neoliberal é antes uma alternativa as suas exigências de retração do emprego e "flexibilização" - supressão de direitos - das relações de trabalho. Uma sofisticação da terceirização, posto que insinue um suposto caráter inovador, produtivo e "livre" aos indivíduos. Uma mentira tragicômica, na medida em que não passa de uma compensação do capital  ao trabalho para o seu beneficio. Se o empreendedorismo otimiza alguma coisa, essa coisa é a produção e o lucro privados! Em uma palavra: é incapaz de transformar as relações de poder no interior da produção, promovendo antes um incremento na exploração na medida em que precariza as relações de trabalho e produção para o assalariado aumentando o poder e o lucro do capitalista. 

No âmbito federal, temos desde Secretaria com status de Ministério a leis (Lei Complementar 123/06) e diversas politicas de apoio e incentivo ao "empreendedorismo." Diversos órgãos e entidades publicas e privadas promovendo e estimulando empreendimentos e empreendedores Brasil afora - sobretudo, ligadas ao patronato e o Sistema S - mobilizando e movimentando alguns milhões - ou seriam bilhões? - de reais em incentivos e subsídios públicos.  No Estado de São Paulo foi criada a Subsecretaria de Empreendedorismo e da Micro e Pequeno Empresa e no município há a Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo.

De fato, é consenso entre a esquerda e a direita que o empreendedorismo seja a tabua de salvação para o mercado de trabalho, na medida em que juntas celebram-no e o reivindicam, apresentando-o deliberadamente cada qual com as suas cores. Esse fato por si só revela o engodo que se trata, posto que seja tão "maleável" servindo a qualquer proposito politico. É relevante, no entanto, observar as peculiaridades do referido no âmbito das características do Estado e da sociedade. Nesse processo, do ponto de vista histórico, cumpre observar a relação entre o Estado e a sociedade.

Holanda, Faoro e Fernandes, pra ficar apenas nos clássicos da historia politica e social brasileira destacam a "cordialidade", o "patrimonialismo" e a "dominação tradicional" como traços da nossa herança cultural ibérica. Características que perpassam as relações sociais e politicas em todas as épocas e definem a nossa tradição e/ou cultura. Do paternalismo autocrático do Império a Republica de elites, do Populismo autoritário a Tecnocracia autoritária até a atual Democracia de mercado observamos essas características indeléveis na sociedade. Assim, não sem embargo as contradições, resistências e conflitos inserem-se nesse processo à democracia e o capital globalizado sem rupturas e transformações, senão adaptação e continuidade.

Modelos de organização politica e social de caráter formal, racionais, impessoais, isonômicos, independentes, públicos e democráticos são ideias e ideais inconcebíveis em um país de fidalgos, oligarcas, senhores, barões. Constituída no seio das grandes propriedades rurais, as relações sociais eram senhoriais, tendo por parâmetros os vínculos pessoais e os laços de lealdade, afetividade, obediência, submissão e dependência como organizadores da sociedade, conferindo coesão a ordem estabelecida.

A historiografia é unanime em afirmar que o fim da Republica velha inaugurou o Estado moderno brasileiro, incrementando a administração publica, a industrialização e a urbanização. Grosso modo, a primeira fase desse processo caracterizou todo o governo Vargas, a segunda poderíamos situar no período "desenvolvimentista" (JK - "Milagre econômico") e por fim aquele que vai da democratização do Estado a Globalização e o neoliberalismo. A maior complexidade das relações sociais e produtivas estabelecidas pela democracia e a Globalização encerram processos, técnicas e procedimentos, incorporando novos atores e entidades no âmbito do Estado e da sociedade. O incremento da burocracia de Estado coincide com a expansão dos mercados e da sociedade civil organizada. Entretanto, essa transformação em extensão e escala é incapaz de alcançar as bases - pessoais - sob as quais se assentam as relações sociais no interior do Estado e da sociedade. Não altera o caráter "patrimonial-cartorial" na relação publico-privado e tampouco as estruturas de poder - as assimetrias das relações entre Estado e sociedade.

Assim, a incorporação pelo Estado é mediada antes por relações pessoais e interesses privados do que por procedimentos técnicos, critérios objetivos e impessoais, interesse publico. No contexto democrático a expansão de direitos condiciona a ampliação do Estado na sociedade, por outro lado, a Globalização promove o fortalecimento do capital transnacional na economia e por esse meio na sociedade - mercado de trabalho. Deste modo, ao mesmo tempo em que há o avanço do capital junto ao Estado ocorre a sua retração diante da economia e da administração. Em outras palavras, a penetração do capital privado junto ao Estado dá-se por meio das privatizações, parcerias, terceirização, subsídios, benefícios, financiamentos, concessões publicas diversas. No Brasil, diante do contexto da hegemonia do capital global e democracia ocidental a expansão da sociedade civil organizada, o incremento do Estado e o desenvolvimento econômico, por sua vez, conciliaram praticas arcaicas, autoritárias, contraditórias, incompatíveis e até antagônicas com a democracia e a cidadania. Conforme o seu caráter típico, a burguesia brasileira não destrói e nem rompe, ela compatibiliza o tradicional com o novo. Incorpora as novas gerações necessárias a sua obra à sua maneira, de acordo com os seus interesses, valores e necessidades. Ao receber o impulso de novas forças sociais domestica-as, doma-lhes o ímpeto, de modo a suavizar-lhe o discurso e a ação. Juntam-se peças decrépitas e antagônicas com idéias de vanguarda, “remendo de pano novo em roupa velha.”

Isso posto, a despeito dos avanços democráticos e do celebrado desenvolvimento econômico, o Estado brasileiro convive de forma relativamente harmoniosa com o patrimonialismo, as oligarquias, o clientelismo e o trafico de influencia. Ao contrário da afirmação contida em "Raízes do Brasil", na democracia brasileira do seculo XXI o Estado é ainda uma extensão da família - oligarquias e interesses privados. Se perpetua-se a histórica apropriação do Estado pelo capital e a burguesia, há no contexto global um incremento na medida em que a expansão do capital transnacional sobre o Estado se dá por meio da apropriação do fundo e patrimônio publico e do recuo estatal no mercado. Nesse processo, a transferência do investimento da produção para a especulação, concorre ainda para o aumento da acumulação, concentração (fusão) e a formação de monopólios e cartéis. A Globalização que aumentou a competitividade diminuiu a concorrência, promovendo a criação de grandes grupos corporativos nacionais e transnacionais. aumento da produção e dos lucros coincide com o fim do pleno emprego, a precarização do trabalho e a desregulamentação do mercado.  

A maior incidência da iniciativa privada junto ao Estado, embora faça supor, não implica na adesão de modelos de gestão corporativos. A determinação formal de valores democráticos por si só não alteram as estruturas arcaicas estabelecidas. A incorporação do repertorio empresarial e/ou técnico ao discurso publico não corresponde a um incremento qualitativo na burocracia e na administração em termos de maior eficacia, imparcialidade, impessoalidade ou produtividade na gestão ou serviço publico. As exigências formais e/ou técnicas impostas pelas tendencias empresariais no interior do Estado não cumprem o papel de superar os meandros da burocracia, promovendo a troca de favores, o clientelismo e as negociatas - "balcão de negócios." As imposições formais decorrentes do Estado democrático de direito são impotentes diante das prerrogativas outorgadas ao homem publico. Esse enorme poder, combinado a apatia, a ignorância e a omissão publica e social, assenta-se em dispositivos legais que asseguram procedimentos corporativos ao servidor que, por sua vez, constituem privilegio ou vantagem inerentes a um grupo ou classe, função e/ou cargo. Assim se compõem o cenário da administração publica para fins privados, caracterizada pela corrupção, fraude, prevaricação, corporativismo e as relações promiscuas entre  o Estado e a sociedade. Cartéis empresariais, escândalos patrimoniais, licitações dirigidas, editais fraudados, orçamentos superfaturados, notas fiscais frias, seleções de projetos, pessoas e liberação de recursos usados como barganha e moeda de troca, benefícios, programas e politicas sociais distribuídos de acordo com critérios pessoais e/ou eleitoreiros. Por trás da suposta objetividade técnica, dispositivos legais e o interesse publico prevalece o lobby dos mercadores do Estado, intermediários políticos que tem acesso direto ao poder, a vontade do burocrata ou do mandatário do dia, suscetíveis ao assedio do capital e aos interesses privados - já foi dito que a verdadeira política é feita nos "corredores do poder." É preciso alguma ingenuidade ou cinismo pra supor que um empreendimento ou um bom projeto em termos de rigor ético ou técnico e relevância social sejam determinantes para o acesso ao poder estatal, quanto mais a sua escolha, financiamento ou liberação de recursos financeiros e/ou apoio técnico! Os barões e capitães da industria de outrora são os "empreendedores" de hoje, parceiros do desenvolvimento econômico, depositários do Estado funcional, moderno, inclusivo e conciliador. Mero verniz, porque a democracia e o Estado de direito são incapazes de penetrar nas estruturas do velho Estado patrimonial dos donos do poder. Porque o amago de todo o processo politico se encerra no caráter pessoal e senhorial das relações sociais, a despeito das supostas questões publicas e/ou de Estado e da competência técnica, posto que a politica no Brasil seja negocio privado restrito a família e aos amigos do Rei - aos demais, dura lex, sed lex. 























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