segunda-feira, 31 de março de 2014

Solidariedade e política.

A solidariedade, talvez, é uma das mais caras características inscritas no imaginário popular brasileiro. Resultante da tradição católica, da herança indígena e negra, do caráter "cordial" lusitano. Um escritor de Minas Gerais dizia que "o mineiro só é solidário no câncer", dissimulando a mediocridade do ser humano por detrás dos seus conterrâneos. Penso, porem, que a mais cara de todas seja o ufanismo. 

Na tradição católica a solidariedade se expressa através da máxima cristã: "amai ao próximo como a si mesmo" ou "amai-vos uns aos outros como eu vos amei." Nessa perspectiva, a tradição cristã renova o judaísmo e o ultrapassa ao inscrever o amor como a virtude do homem cristão, prescrita por Deus como a regra suprema a ser seguida para efeitos de nortear a sua conduta terrena no caminho para a redenção. Reconhece-se o outro como sujeito depositário dessa virtude, promovendo a um só tempo o amor e o homem como elementos sagrados. Não seria exagero dizer, ainda que numa perspectiva escolástica, se estabelece nesse momento a pedra angular do antropocentrismo e o postulado da universalização da humanidade por meio do amor. Na perspectiva judaica prevaleciam as prescrições da Torá - "amar a Deus sobre todas as coisas", "não matarás", "honrará pai e mãe" - enquanto que nas tradições helênicas basta-nos que eram sociedades essencialmente escravocratas, xenófobas, patriarcais e aristocráticas - a judaica também era patriarcal. Por fim é relevante o desprezo pelo outro manifesto a partir da indiferença de Caim em relação ao seu irmão: "acaso sou eu o guardião do meu irmão?"

As sociedades tribais americanas por sua vez, tanto têm outra relação com a natureza - mais harmoniosa -quanto com o outro no interior da aldeia. Com efeito, em muitas tradições indígenas subsiste a deificação da natureza e as relações sociais são de outra especie, não mediadas por razões econômicas - posse, lucro, exploração e acumulação. Predomina o caráter coletivo no que diz respeito a organização da sociedade, limitando as aspirações e tendencias individualistas. No que diz respeito a população negra de origem africana, é relevante observar que até o seculo XVIII, em muitas regiões - como BA e MG - ela era  superior a branca portuguesa. A solidariedade entre os negros africanos inscreve-se numa perspectiva de sobrevivência e resistência ao cativeiro, bem como de fortalecimento dos laços ancestrais e integração ao novo ambiente.

A "cordialidade" do brasileiro é algo sui generis. Característica ibérica que perpassa toda a sociedade e as instituições. Ignora o tempo e as orientações politicas correspondentes - do Império a Republica, da Ditadura a Democracia. A "cordialidade" se inscreve na ordem das "regras" não escritas e que estabelecem os parâmetros das relações sociais no Brasil. Diria até que ela é a regra mór - há outra que ignore as formalidades burocráticas-estatais, trâmites corporativos, liturgias jurídicas, rigores acadêmicos? A síntese da cordialidade consiste no caráter pessoal que media as relações sociais e institucionais. No Brasil tudo é pessoal, nada pode ser estritamente profissional, formal, institucional, universal. É no âmbito da cordialidade que se inscreve também a solidariedade. Nesse sentido, trata-se de uma especie de solidariedade particular, pessoal, restrita, condicionada, manietada, dissimulada.  

Solidariedade determinada por vínculos pessoais ou de classe. Corporativos ou profissionais. Condicionada por afinidades espirituais ou ideológicas. Restrita a determinados indivíduos ou grupos. Por detrás da virtuosa compaixão, dissimula sentimentos de superioridade moral ou intelectual. Nessa perspectiva, necessariamente rebaixa-se o objeto da solidariedade a criatura inferior. Desprovido da graça da providencia, das bençãos da sorte e da bem aventurança, ignorante com relação aos bens da civilização e das ciências. Em outras palavras, criatura desumana, barbara e desgraçada que precisa ser redimida, resgatada ou assistida pela misericórdia ou boa vontade de outrem - do senhor, do doutor, do patrão. Tudo rigorosamente inscrito na ordem social do paternalismo e/ou providencialismo que estabelece e justifica as assimetrias, a exploração, a opressão e o arbítrio. O avesso da justiça, do direito, da cidadania, da politica. 

Estas características atravessam toda a sociedade - inclusive a esquerda. Na esquerda conheci muitos que se recusam ou sequer cogitam deixar a sua zona de conforto - em quaisquer circunstancias! Não se admite que se critique o padrão ou o gosto pela sua boa vida burguesa - produto da exploração da classe trabalhadora. É tabu ainda falar em altos salários, rendas que não resultam do trabalho, patrimônio pessoal, luxo e desperdício - essas são questões de ordem pessoal, nada mais individualista e contraditório para quem pretende falar em revolução e ditadura do proletariado! Em anos de militância a esquerda, passando necessidades e privações, sozinho e quando ainda tinha a minha família - que perdi por esses motivos, entre outros -, muitos "companheiros" ligados a administração publica, a burocracia partidária, sindical ou a movimentos sociais e o terceiro setor jamais cogitaram sequer de alguma maneira colaborar para a minha recolocação na produção. Mesmo conhecendo a minha trajetória como militante, intelectual, profissional. Ao contrário, muitos se afastaram e outros ainda se aproveitaram da situação pra explorar o meu trabalho. A maioria dissimula, não recusa, porem efetivamente nada faz - demonstrando isso pelo total desinteresse pela situação alheia no cotidiano. Da burguesia nunca esperei nada, porem, não tenho mais ilusões, tampouco esperanças com a esquerda indiferente e que desdenha ou ignora a solidariedade.







Um comentário:

  1. O conceito atual de solidariedade foi reapropriado. Muitos partidos políticos, associações, ONGs e até mesmo as instituições de Estado, não mais vêem como uma causa humanitária conforme foi nos últimos quartéis do século XIX e no início do século XX. Nos tempos atuais a palavra não foi apenas banalizada, como também deixou de sensibilizar muitos de nós da esquerda. Ela se tornou até mesmo nome de partido político formado por ex-sindicalista (que deveria ser esta pessoa jurídica uma representação popular de esquerda). No entanto, não foi apenas o termo que perdeu sentido na vida das pessoas, muitas outras coisas sofreram a subtração, ao tentar semantizar uma causa humana e um dever nosso de ajustarmos a nossa sociedade, para o sentido social. O teu texto coloca bem esta situação de desencanto, desilusão e um pouco do pessimismo que a humanidade vem trazendo. Principalmente o Brasil está ao mesmo tempo indignado com a estrutura existente, porém muito confuso (Brasil: população) em relação a política, o funcionamento do Estado e o que devemos fazer para transformá-lo no Nosso País. Por isso este sentimento de solidariedade não é retomado por nós e torna-se algo não pertencentes mais ao nosso vocabulário socialista. É. A partir deste texto será necessário chamarmos a atenção para que retomemos a direção para o outro que não conhecemos, por medo ou por desconhecermos mesmo.

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