domingo, 27 de abril de 2014

Memórias do pó.

Na infância teve uma vida difícil. Vivia em uma casa pequena, pobre com os pais e muitos irmãos. A comunidade embora fosse muito carente era também bastante unida e solidária. Seu pai era um trabalhador braçal pouco instruído, como muitos na comunidade. Morreu quando ele ainda era muito jovem, assim precisou assumir a responsabilidade pela família. Cresceu com o labor, desde criança colaborando com o sustento da família, conhecendo de perto a exploração, a violência e a miséria. A vida no campo é simples, porem dura e árdua.

No campo, os caminhos são longos e tudo é próximo: a natureza e as pessoas, as privações e a miséria, o trabalho e os sacrifícios, a violência e a solidariedade, a vida e a morte. O sol, a terra, a poeira e o céu infinitos. A fome, a dor e a sede por companhia. Quanto suor, lágrimas e sangue fazem um homem? A sua terra tinha dono - sob o sol, haverá terra sem dono? Uns resistiam, alguns renunciavam, outros resignavam, muitos pereciam. Compartilhavam os senhores e algozes. A charrua e a rede, o martelo e a foice, a injustiça e o sofrimento, o açoite e o cárcere, a cruz e a espada. 

Dividia o tempo entre a casa, o campo e a oficina. Eventualmente dirigia-se ao mercado e o templo na cidade. A comunidade resumia-se a labuta, gemido e abrigo. A ausência de outros espaços de convivência, a exploração e as privações condicionavam os indivíduos a uma vida austera e severa, agravada pelas disputas internas, desconfianças e hostilidades diversas. Os conflitos de interesses, a opressão, a convivência forçada, os contrastes e as contradições entre exploradores - e os seus colaboradores - e explorados causavam revoltas e protestos. A violência e a repressão, o ódio e o medo eram constantes, a morte e a guerra espreitavam nas esquinas. Muitos dos seus amigos, familiares e vizinhos foram perseguidos, encarcerados, desapareceram, pereceram pela mão de soldados de forma brutal.  João foi preso, torturado e decapitado. Muitos antes dele, inúmeros após. 

Foi nesse ambiente que fez-se homem. Convivendo com trabalhadores, escravos, mendigos, camponeses, comerciantes, contrabandistas, ladrões, prostitutas, soldados, rebeldes, fanáticos. Todos buscando sobreviver em uma ordem senhorial extremamente autoritária, opressora e violenta. A autoridade publica mantinha a ordem com a presença de tropas de ocupação armadas e a colaboração da elite local - grandes proprietários, ricos comerciantes, lideres políticos e eclesiásticos. A manutenção da ordem estabelecida permitia o controle e a estabilidade econômica e social imprescindíveis pro aumento da arrecadação e concentração do poder e lucros.

Não aceitava a exploração, a injustiça e a crueldade. Compartilhava com os mais pobres, solidarizava-se com os marginais, apoiava os trabalhadores, defendia as mulheres, crianças e os animais. Vivia rodeado por essa gente pelas ruas. Por isso era um sujeito simples, admirado e popular. Apreciava a simplicidade e a humildade e assim era feliz. Homem do campo, prezava a convivência e as celebrações que compartilham a vida e a alegria. Acreditava no poder criador - o amor, a paz, a solidariedade, a fraternidade, a justiça, a igualdade, a liberdade.

Homem generoso, justo, corajoso, tinha aquela dignidade que apenas a simplicidade e a serenidade lhes confere. Embora fosse um homem simples e austero, era também um sujeito calmo e tranquilo. Suportava com resiliência e obstinação as privações e adversidades. Tinha uma visão peculiar sobre o homem, a vida, a justiça, o trabalho, o amor, a natureza. Não é o mérito, a força ou o esforço, são as condições, as competências e as necessidades dos homens. Repudiava a face fria da indiferença, o olhar altivo dos hipócritas, a crueldade dos poderosos. Qual a virtude de quem julga o vicio? E a força daquele que desdenha a fraqueza? Que grandeza pode haver no orgulho? Há razão nas certezas? Há alguma dignidade na humilhação e no desprezo? Qual a honra do covarde? Do indiferente? Do egoísta?

As mãos, roupas e sandálias desgastadas e a bolsa vazia. Sob a cabeça o céu e os pensamentos distantes e insondáveis. Aos pés a poeira e o caminho adiante. Transbordando a esperança obstinada dos loucos ele arrasta com a fúria revoltada de um rio os deserdados da terra, os excluídos da mesa, os marginais da sociedade. Afrontando a soberba, desprezando o ouro, repudiando a força, ignorando o poder, desafiando a morte. Sua voz é a admoestação dos excluídos, o grito dos oprimidos, o clamor dos indefesos, a advertência dos silenciados pela fome, a albarda, a chibata, a vara, a espada. Foi poeta, profeta, artífice. Agitador, pacificador, contraditório. Afrontou todos os poderosos e todos os poderes - político, militar, econômico, eclesiástico. Denunciou e revoltou-se contra as injustiças do poder e sofreu as consequências - foi perseguido, ameaçado, abandonado, humilhado, preso, torturado e morto. A hora grave foi abandonado por todos - familiares e amigos. Viveu num povoado qualquer da Palestina, como poderia ter sido da Índia ou do Iraque, do México e do Paraguai, da Guatemala ou de Angola, de Serra Leoa e da Espanha ou do Brasil. Apenas um homem simples, justo, revoltado e corajoso como muitos que nascem, trabalham e morrem anônimos e em silencio. 











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