sexta-feira, 2 de maio de 2014

Meninos do Brasil.

O Carlos foi só uma sombra. Apenas um garoto pobre, favelado, famélico, triste e esperto. Como ele contam-se aos milhões as crianças destruídas pela miséria, a injustiça e a omissão publica e social. Como uma pálida sombra, traz algum conforto a nossa vida, passando desapercebido. Não deixou nenhum traço, senão algumas poucas recordações inscritas nas profundezas da memoria. Assim é a vida, "uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum." Talvez o único "sentido intimo" das coisas seja "elas não terem sentido íntimo nenhum.” Basta viver, porque "viver é a coisa mais rara do mundo, muitos apenas existem."

Carlos era só mais um "neguinho" como muitos espalhados pelas favelas paulistanas. Convivi com ele na do Piqueri, em Pirituba (SP) entre 84 e 92 ou 93. Eu poderia pensar em razões pra escrever sobre ele, mas, me basta escrever. Ele foi meu amigo, cresceu comigo pelas ruas do bairro. Lembro dele nas brincadeiras da rua, na minha casa, na do vizinho e na favela. Brincávamos todos os dias na rua - futebol, vôlei, policia e ladrão, esconde-esconde. Ele tinha um irmão mais velho e dois primos mais ou menos da mesma idade que eventualmente brincavam conosco. Muitas das brincadeiras, conforme envolvessem muitos moleques, sempre acabavam em confusão. Ele morava em um barraco com a mãe, o irmão e a avó. Fui lá várias vezes. Lembro bem do chão de terra batida - dois cômodos e um banheiro precário e minusculo. Sem saneamento, ligação precária de água e energia e quase nenhuma mobília. Recordo-me do forte cheiro de esgoto e urina que a época me incomodaram muito, devia ter entre nove e dez anos e nunca havia estado antes em um barraco. Sua avó morreu logo que se mudaram pra lá - leptospirose. Os ratos eram imensos, infinitos, enfurecidos, atrevidos. Uma das brincadeiras era praticar tiro ao alvo com pedras neles nos montes de lixo, outra era atear fogo no entulho pra vê-los correndo e por fim, colocar os cadáveres de ratos mortos nos trilhos para depois observa-los partidos ao meio pelo trem.

A favela até os 12 anos era para mim uma aventura. Ela se fez aos poucos, no incio eram alguns poucos barracos margeando o córrego precariamente aterrado a beira da ferrovia. Esse pedaço de chão em que se fez a favela do Piqueri era um descampado margeado por casas antigas, construídas por volta dos anos 50. Entre os trilhos e a rua havia esse descampado e um córrego - do lado de lá dos trilhos a vila dos trabalhadores da privatizada RFFSA. No inicio dos anos 80 toda a margem da ferrovia - da Estação de Pirituba até a do Piqueri - foi desapropriada e as casas do entorno demolidas para a construção de uma pista ligando a antiga Estrada Velha de Campinas até a Marginal Tiete. A obra parou por aí e nunca foi concluída, abrindo o caminho para a ocupação que foi a favela e hoje é a Comunidade do Piqueri. 

A encosta do morro, a parte íngreme demorou pra ser ocupada e era ali a divisa entre a favela e o asfalto. A "terra de ninguém" em que os moradores do asfalto jogavam o lixo e o entulho que se misturavam com os restos das casas, da mata e o descarte da favela - lá era o nosso point (dos meninos do asfalto e da favela). Brincávamos nos morros de terra e entulho resultantes da passagem das maquinas, das casas demolidas, a mata devastada e o aterro mal feito do córrego. Corríamos, nos escondíamos e vasculhávamos o terreno feito ratos. Eramos os corajosos guerreiros e exploradores do terreno baldio, dos restos das moradias, dos montes de terra e entulho. As aventuras terminavam sempre com roupas imundas e escoriações. Lembro-me do companheirismo infantil, das brincadeiras inocentes, da diversão simples e intensa, das raivas e frustrações pueris. Apenas pensávamos apenas em nos divertir, enquanto sobreviver era o fardo silencioso e cotidiano do Carlos. Dividia o que tinha com ele - roupas, brinquedos, alimentos. Ele dividia tudo -  a sua vida toda. A sua malandragem era ir em casa todo dia a hora da janta pra ser convidado - sempre era, muito embora meus pais não o admitissem a mesa. Não entendia e me incomodava perceber que um menino como eu não tinha nada - sequer cuecas e calçados! Não imaginava quantos ou que não tivessem sequer atenção, cuidados, carinho, esperanças, sonhos, comida.

Ele era um menino simples, esperto, sujo e faminto. Mesmo nos momentos de alegria, quando estávamos entretidos com as responsabilidades da infância - brincar e se divertir -, não podia ocultar a tristeza que as crianças famintas dissimulam no olhar. Era infeliz, as vezes, se esquecia. Não se ostentam as marcas da miséria, elas são mais sutis. Lembro-me que na adolescência eu comecei a trabalhar e nos afastamos. Ele estudou pouco e já havia deixado a escola, enquanto seu irmão mais velho já estava envolvido com o crime e a sua mãe doente se prostituindo para sobreviver. Antes de completar dezoito anos foi assassinado a tiros na porta do barraco de um ladrãozinho da favela - consta que o alvo era o outro. Poucos anos depois a sua mãe contraiu aids e morreu abandonada em um leito do PS de Pirituba. Não sei da sua sepultura ou aonde esta enterrado. Não sei por que ainda penso nisso, mas, sei porque escrevo. Porque embora entenda, ainda não aceito - e jamais vou aceitar - que muitas crianças nada tenham senão a própria vida que pouco vale para a sociedade e nada para o Estado. 


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