domingo, 11 de maio de 2014

Dos fatos, das "revoluções culturais" e das periferias....

Ufanismo é a palavra que designa um otimismo exagerado de caráter patriótico. Deslumbramento por sua vez, tem a ver com uma espécie de fascínio ou encanto em excesso que escapa ou superestima a realidade. Revolução é algo que subverte a ordem estabelecida, colocando em questão as estruturas sobre as quais se assentam o sistema e a sociedade. Assim, uma revolução é mais do que uma revolta, muito mais ainda que transformação, assimilação, inclusão, manutenção e reprodução do sistema. Qualquer coisa abaixo disso é ingenuidade, ignorância ou má-fé. Grosso modo, essas são as características que podem definir uma revolução.

Um escritor-empresário bem sucedido e consagrado há mais de uma década - pelos formadores de opinião (imprensa e academia) - e com grande incidência política e governamental afirmou: "A mídia brasileira é mesmo um lixo, mais de 100 artistas da periferia aqui, fazendo uma verdadeira revolução cultural, representando nosso pais com muita propriedade e não tem uma nota na imprensa do nosso próprio pais. Ontem terminamos a nossa mesa, com o Marcelino dizendo que talvez ficando nus geraria alguma nota. Se fossem os autores eleitos pela elite que estivessem aqui se apropriando desse espaço, ai sim, eles falariam até como foi o café da manhã deles.Mas isso não apaga o que está acontecendo aqui, tantos saraus, coletivos, escritores, poetas, artistas que representam todos as quebradas de São Paulo. E isso é fato.[1]"


Ferréz não é ingênuo e nem tolo. É autor de sete livros desde 97. Escreveu durante uma década na Caros Amigos, participa do TV Carta da Carta Capital e blog no Le Monde Diplomatique Brasil. Participa de programas televisivos na rede aberta e na internet dialogando com jornalistas conceituados nesses meios. A questão não é teórica e nem semântica. Diz respeito a muito mais do que isso, porque nem sendo demasiadamente otimista ou ingênuo se consideraria esse fato uma “verdadeira revolução cultural.” Do ponto de vista objetivo, os participantes do evento em questão no país vizinho foram escolhidos e financiados pela Prefeitura de São Paulo, por pessoas historicamente ligadas por interesses ou afinidades ao partido dos trabalhadores e/ou movimentos sociais ligados a ele. Ferréz, Alessandro Buzo (Suburbano Convicto), Sergio Vaz (Cooperifa), Marçal Aquino, Emicida, Criolo, Racionais MC’s são nomes consagrados, aclamados há mais de uma década, amplamente aceitos pela classe media e os formadores de opinião da mídia e da academia mais progressistas. Ferréz já foi na Globo e o Emicida pode-se dizer que é da casa. A Cooperifa tem apoio do governo federal e da Petrobras – ano passado esteve na Alemanha por meio da Embaixada do Brasil e Fundação Heinrich Böll. Eventos apoiados pelo SESC-SP, Itaú Cultural, Oxfam, Ministério e Secretaria de Cultura. Da gigante do terceiro setor e historicamente ligada a USP e ao PT, Ação Educativa.

A “verdadeira revolução cultural” proclamada não dispensa, ao contrário, reivindica ainda para a sua completa auto-afirmação o reconhecimento da grande mídia burguesa, idêntico aqueles “autores eleitos pela elite” que ela fala até sobre o “café da manhã” que eles tomam! “Revolução cultural” é ser reconhecido e aceito pela mídia da Casa Grande - que é um lixo! -, escolhido pelo establishment do partido e do governo e/ou os seus “parceiros” para participar de um evento festivo no país vizinho? Isso tudo ainda a partir de quais “critérios” – técnicos ou sociais? Participar de festa literária na Argentina em ano eleitoral e em meio ao acirramento das diversas lutas populares nas periferias por questões relativas à moradia e a repressão e violência policiais decorrentes da Copa e da especulação é “revolução cultural”? Por fim, levantar a bandeira do “anarquismo’, como muitos desses coletivos proclamam submetendo-se ao governo é “revolução cultural”? 


Ao que parece, a “verdadeira revolução cultural” para alguns ditos representantes de “todas as quebradas de São Paulo” cabe no bolso e nos planos do governo e das grandes entidades da burguesia que buscam maquiar ou suavizar o capitalismo, incluir a periferia no sistema e conciliar as classes. Trata-se antes de uma incorporação de mercado que cresce e se expande com o apoio institucional. A critica não subestima o importante trabalho de muitos grupos organizados e a luta das periferias[2], nem o dialogo e o apoio do governo, porem, superestimar isso diminui a revolução, o esclarecimento e as demandas populares no interior da luta de classes. Porque antigamente “revolucionários” – anarquistas ou comunistas - eram mais combativos, menos festivos e deslumbrados e, gostem ou não, isso é fato.



[1] O evento na Argentina é ainda apoiado ou patrocinado pelo grupo burguês e golpista Clarín e o Banco Província.  http://www.clarin.com/sociedad/Rap-poesia-periferia-San-Pablo_0_1129687092.html


[2] Estive em alguns saraus em SP ano passado e na baixada santista e tudo o que vi foi muita celebração, algum debate, muita iniciativa e auto-afirmação, mas, nada do ponto de vista teórico, estético ou ideológico que justifique a definição “revolucionário”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário