terça-feira, 13 de maio de 2014

Justiça, prisões e teorias.

Muitas pessoas escrevem sobre a prisão - os presos e/ou o sistema carcerário. A maioria delas vive deles. Algumas - senão a maioria - que os conhecem apenas por meio de livros, relatórios ou estatísticas. Na verdade vivem do oficio de escrever e produzir informações sobre eles. O cotidiano de uma prisão é muito diferente de visitar uma. Não se visita toda a prisão e nem o dia todo. Não se conhece uma prisão passando um dia nela - sequer visitando-a uma vez por semana. Muitas coisas insinuam-se no cotidiano, revelam-se nos imprevistos. A rotina, a ordem e a dinâmica das relações apreende-se no dia-a-dia. A imensa maioria das regras e dos padrões que definem e dão sentido e estabilidade a cadeia não são escritos - sequer ditos - e nem se submetem as formalidades, objetividades, imparcialidades e todo o repertório científico e institucional que os especialistas, burocratas e políticos adoram ignorar.

A cadeia não faz parte da rotina de juízes, promotores, defensores e nem de muitos advogados. Quando trabalhei no C.D.P. de Sorocaba (SP) e eventualmente visitava outros presídios naquela cidade e em outras da região, por diversas vezes, constatei isso. Em um ano vi alguns poucos advogados visitando presos - nenhum deles era defensor publico. Quando da cerimônia de inauguração da ala em que trabalhava eles foram ao presidio - que foi todo preparado para isso. Promotores e juízes são pessoas que tratam da "realidade" do processo - papel - e que quando escrevem sobre prisões falam sobre aquilo que tem contato a respeito dela - relatórios, processos, estatísticas, papéis. Muito da realidade de uma prisão não é falado, não pode ser dito, é preciso descobrir e perceber e isso só acontece no dia-a-dia por meio da minuciosa observação e do dialogo.

Pode-se constatar a negligencia e omissão do judiciário no sistema carcerário não apenas pela sua ausência e pelas péssimas condições, mas, sobretudo por aquilo que se escreve sobre ele. Do ponto de vista objetivo, há que se considerar antes de tudo, o caráter autoritário do Estado e da sociedade brasileira - patriarcal, senhorial, burguês, patrimonial, racista, bacharelista, cordial e avesso a democracia. É a partir dessa perspectiva que se deve considerar tanto o sistema judiciário quanto o carcerário. Assim sendo, a cadeia está para os pretos e pobres tanto quanto o judiciário e o direito estão para a ordem burguesa. A cadeia é lugar de presos, agentes penitenciários e de segurança, policiais, assistentes sociais e eventualmente médicos, psicólogos, professores, religiosos e advogados. É, do ponto de vista da sociedade, lugar de pena, sofrimento, privação e expiação. Assim, tolera-se e se omite em relação a negligencia e aos abusos e excessos frequentemente cometidos em nome da"ordem, da "disciplina", da "autoridade" e da "paz" e "segurança." Força e violência que deveriam ser recurso tornam-se regra e ela hábito. É pelo olhar e a voz dessas pessoas que se escreve sobre a prisão - o preso não tem voz, não fala, não é ouvido, sequer é visto.

O confinamento torna a convivência forçada e as relações sociais norteadas pela desconfiança e hostilidades. É o pesadelo hobbesiano, em que "o homem é o lobo do homem" numa luta de todos contra todos. Não há lugar para acordos ou negociações, é casa de obediência e submissão pela força, coação e intimidação. Os que desconhecem essa realidade acreditam que a "ordem" ou a "paz" no cárcere resultam da "boa" administração ou convivência. Por outro lado, há ainda uma tendência em fazer eco a grande mídia e a "opinião publica" - a da classe média e elites que se sobrepõem a das classes populares. Fala-se muito, sobretudo aquilo que já foi dito, pouco se informa, nada se esclarece. Fica a sensação de que quem já leu ou assistiu a uma matéria ou reportagem já viu todas - sempre mais do mesmo, causando uma sensação perniciosa de letargia, repulsa e impotência. A falta de argumentos e critica, sobram os clichês, as redundâncias, os superlativos, as trivialidades, preconceitos e idiossincrasias; tudo rigorosamente superficial e tendencioso. Alias, rebaixa-se a critica ao nível do sofisma, da falácia, da fraude, do estelionato, do marketing, do insulto e do ódio. Há a nítida intenção nesse processo em, de um lado promover a privatização do sistema carcerário e, de outro a sensação de impunidade com o objetivo de aumentar a repressão e fortalecer o Estado policial na sociedade.

Persiste o mito na sociedade brasileira que a imprensa e a mídia informam. Tão evidente quanto o fato de que não informam é a sua pretensão em ir além e "formar" - ou melhor, desinformar e deformar. No inicio do século passado Lima Barreto já denunciava tanto o poder de manipulação e as tramas da imprensa quanto a ignorância e a arrogância dos jornalistas. A televisão foi o ato final desse processo perverso e sistemático de moldar o Brasil das elites ilustradas. Esse sofisticado meio de manipulação encerra o perene desprezo social e a sistemática omissão publica em relação a educação. À histórica tradição autoritária, a "informação" viciada e a reprodução dos ideais que perpetuam os interesses das classes dominantes. Se "a crise da educação no Brasil é um projeto", a imprensa cumpre-o com zelo e competência.

Não se trata de reformar, por isso não falarei das mazelas - que não são poucas -, porque o sistema carcerário é a ultima etapa de um longo, sofisticado e permanente processo de criminalização da pobreza que se encerra no Estado autoritário a serviço do capital. Ou a sociedade se levanta e toma a Bastilha, ou renuncia ao Leviatã - marionete da mão invisível. Rafael é deficiente físico e mental - decorrentes de problemas no parto. Entre vinte e três anos, casado e pai de uma filha com menos de um, sobrevivia em um cômodo cedido pela família de sua esposa, vendendo sacos de lixo e panos de prato pelas ruas de Itu (SP). Numa loja de lingeries, no desespero da sobrevivência se aproveitou da distração de uma cliente e saiu com a sua bolsa deixada no balcão. Perseguido e detido pela própria vítima, foi levado a delegacia e conduzido ao C.D.P. de Sorocaba. Réu primário e delito de baixo potencial ofensivo, foi incluído no projeto que eu trabalhava e tornou-se meu aluno. Jovem simples, humilde, atencioso, dedicado, ingênuo e alegre, era bastante querido e respeitado pelos demais presos e funcionários da prisão. Na primeira visita da sua esposa chorou bastante de alegria e brincou muito com a bebezinha - alguns funcionários juntaram alimentos, roupas e produtos de limpeza para ela. Embora seja um local sinistro e sombrio, conheci pessoas surpreendentemente humanas naquilo que nos distingue das demais criaturas, para o bem e para o mal. Na sua segunda semana, chegou a intimação para a sua audiência. Descobriu então que o seu B.O. - ele foi autuado pelo delegado no artigo 155 pelo crime de furto - havia sido mudado para o artigo 157 - roubo - porque o promotor entendeu pela redação do registro policial que ele havia "ameaçado" a vítima. Resumindo, um homem em uma sala analisando um pedaço de papel entendeu que um deficiente físico e mental detido pela própria vitima era um sujeito perigoso e devia ser processado e punido como um assaltante. Quando falamos sobre isso com Rafael ele não se revoltou. Ainda hoje não sei se não foi capaz de compreender as implicações daquilo ou se demonstrava a necessária serenidade  que os bestializados, oprimidos, injustiçados e excluídos possuem.

A injustiça é a herança do autoritarismo. Rafael não foi ouvido e nem visto por quem tem por oficio acusar. Foi considerado apenas aquilo que o delegado escreveu sobre "os fatos" - supondo-se que o acusado tenha sido ouvido e respeitado pela policia. Omitindo-se deliberadamente em relação a sua condição de deficiente físico e mental, a nenhuma resistência a prisão - sendo capturado pela própria vitima - e o fato de não ter antecedentes criminais, ser casado, pai e trabalhador. A farsa da justiça sustenta-se em processos toscos, viciados e com pés de barro, conduzidos por reacionários altivos e indolentes. Feitos para intimidar os pobres e saciar os ávidos interesses da indústria da segurança e repressão - a burguesia de farda, uniforme, toga, capa, terno, gravata e pena. O sistema carcerário é repleto de Rafaéis, produzidos em profusão pela policia e o judiciário. São as duas pontas do processo de criminalização da pobreza, um subsiste no outro e se complementam. Se ilude quem pensa que o judiciário consagra a justiça quando eventualmente promove os mutirões processuais ou critica o sistema carcerário; porque está apenas evitando o colapso e compensando as incontáveis injustiças, violações e arbitrariedades cotidianas, prolongando a sobrevivência de um sistema falido, essencialmente autoritário e desigual. 

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