quinta-feira, 22 de maio de 2014

Humanismo, ciência e politica.

No final do inverno de 2009 eu cheguei em Sorocaba. No inicio estava hospedado na casa de parentes em Porto Feliz - cidade próxima. Quando saía do trabalho no C.D.P. de Sorocaba ia até a Rodoviária para pegar o ônibus até Porto Feliz. Eu passava a semana assim, entre Sorocaba e Porto Feliz, retornando aos finais de semana para a minha família em São Paulo. Foram cinco semanas assim, até me instalar definitivamente em Sorocaba.

O ponto de ônibus para Porto Feliz não ficava dentro da Rodoviária, mas na rua dela e o carro nem era executivo - ônibus comum intermunicipal. Eles saiam com intervalo de uma hora. Do outro lado a rua era tomada de pequenos comércios - um bar na esquina, uma ótica, clinica particular, loja, doceria, despachante, etc. A fila ainda não era grande, mas a tendência era aumentar. A vigem de cerca de uma hora  e meia pode ser bastante desconfortável em pé, após um longo dia de trabalho, por isso assumi um lugar na fila para assegurar meu assento no carro.

Eles chegaram todos de mãos dadas do outro lado da rua. Um homem jovem, mais ou menos da minha idade, a mulher mais nova e uma criança com cerca de quatro anos - um pouco mais velha que a minha filha a época. Para mim estava claro que tentavam ser discretos. Caminhavam com passos tímidos, inseguros, contidos como quem vacila. Estariam perdidos - pensei? Ou apenas esperando algo ou alguém, caminhando pelo entorno sem pressa para passar o tempo? A menina de mãos dadas com ambos, o homem do lado da rua com as malas mais pesadas e protegendo a família, a mulher do outro lado com algumas bolsas. Eu me identifiquei com a postura dele. Sempre que saía com a minha família eu tomava o lado da rua pra mim - de modo a colocar o meu corpo entre elas e os perigos da via. São essas pequenas atitudes que parecem banais e passam despercebidas que demonstram o apreço, a renuncia e o desvelo.

Passava das dezoito horas e a noite caía rápido. A temperatura na mesma velocidade. As malas grandes e pesadas denunciava que não eram da região. Pararam diante da garagem da clinica. O olhar perdido da mulher e o angustiado do homem contrastavam com a alegria insensata da criança e, não deixava duvidas quanto ao que acontecia ali. A mulher desabou, o homem deixou os braços cair, em pé, arqueado, olhos vazios contemplando o nada. A criança sentou-se no chão, abriu a bolsinha que carregava a tiracolo e começou a brincar no canteiro com as suas bonequinhas. Agachada, parecia as pessoas a minha volta, fechadas no seu pequeno mundo, alheias a tudo ao seu redor, no entanto, era pura e feliz naquele momento. 

A cena se desenrolava sutilmente a minha frente, alheia as pessoas a sua volta tanto quanto elas aquela família. A fila havia aumentado em volume, as conversas oscilavam entre a animação e a animosidade. A maioria parecia hostil, entediada, indiferente, atolada e entorpecida no seu próprio mundo. A aparência que oscila entre o hostil e o blasé é a mascara que dissimula o medo, a apatia e a mediocridade, sintomáticos de uma sociedade altamente padronizada, individualista e alienada. A fila é uma linha de montagem, as pessoas autômatos programados, atados a fios e cabos conectados a cabeça, a cintura e as mãos. O componente ligado ao corpo é a dose diária de "soma." É a marcha da insensatez, da lucidez doentia e sombria. Aturdido constatava a invisibilidade daquela família. 

Enquanto a criança se dedicava as suas importantes tarefas infantis - ser feliz e trazer alegria ao mundo -, sua mãe resignava e sofria, seu pai buscava meios de trazer-lhes algum conforto e segurança. Lembrei-me da sobremesa na mochila - algumas barras de chocolate. Contei o dinheiro no bolso e calculei que podia me virar com menos vinte reais. Atravessei a rua e me aproximei. Cumprimentei o rapaz e perguntei se aquela era a sua família. Ele disse que sim. Sorri para a menina e a mulher abatida. Ofereci os chocolates para elas. Disse-lhe que também era pai e trabalhador e havia percebido a situação, desejava ajudar, embora não tanto quanto gostaria e precisassem. Contou-me de onde eram e para aonde iriam. Explicou-me a razão de precisarem pernoitar ali e que não eram da rua - fato que podia-se perceber pelo seu constrangimento e pelos cuidados da criança. Eu não questionei nada, apenas sugeri que se alimentassem com aquele dinheiro e que buscassem apoio junto a prefeitura no dia seguinte. Meu ônibus chegou, despedi-me comovido e parti pensando na minha filha. Pensando em como ela estaria em casa - limpa, agasalhada, alimentada, protegida. Em quantas não estariam como aquela outra menina, sob o chão frio e o céu escuro por razões econômicas e politicas e, sobretudo, por causa da indiferença, cinismo e apatia.

No outro dia começou a reunião entre a equipe técnica do Projeto Carpe Diem no C.D.P. de Sorocaba e a Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Sorocaba. O objetivo era firmarmos uma parceria para o encaminhamento institucional dos egressos inseridos no projeto, bem como oferecer apoio as suas famílias de modo a promover a mais ampla reintegração e reduzir a reincidência. Alem da secretaria municipal, estavam presentes alguns técnicos responsáveis pelos serviços sociais disponibilizados no município. Ao final da reunião, relatei a situação daquela família para uma Assistente Social da prefeitura questionando-a sobre o encaminhamento que poderia ser dado. Ela me ensinou que essa era "uma questão subjetiva." Que "muitas pessoas" não se sentem "incomodadas" e assim não levam esses "casos" a secretaria. Por fim, deu o telefone do "recolhe" e o do albergue - ambos atendem apenas durante o dia.

Não sei o que pensam as Assistentes Sociais daquela cidade. Não sei o que ensinam nas faculdades de Serviço Social daquela região e nem nos cursos de hoje. Apenas pude perceber pelos seus cabelos, pele, roupas, celular, carro que ela nunca sequer sonhou na vida em passar um único dia da sua existência na rua. Percebi ainda que a jovem deslumbrada pelo cargo e o "diploma" queria me impressionar com a palavra nova que havia aprendido e incorporado - "subjetiva." Impressionou, porem, pela fria indiferença e tola vaidade - hoje não impressionaria mais. Disse-lhe que discordava por duas razões: primeiro que me parecia ser uma questão bastante objetiva para quem esta na rua experimentando o frio, o medo e a fome e que por fim, a política pública, seja qual for, é Direito e objetiva, portanto, não pode estar condicionada ao "incomodo" alheio agindo apenas quando tais "casos" são levados até a administração. Nesse mesmo dia não vi mais aquela família pela Rodoviária. Na outra semana me arranjei pela cidade e raramente andava por lá - eventualmente via alguns homens de rua resignados pelo entorno. Nunca mais vi aquela família e nem a jovem Assistente Social - menos mal para todos.

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