O senso comum - com todas as reservas e o nojo que tenho pela
palavra - sustenta que a educação é um processo acumulativo. Sustenta ainda que
a vida é um aprendizado constante, pois, eu estou determinado em um processo
contrário - pretendo a cada dia acumular menos, se possível dissipar tudo que
sei, aprendi e juntei. E nisso, incluo as pessoas.
Há um elevado apreço no imaginário coletivo pela ciência e a
técnica e um desprezo generalizado pela cultura e o pensamento. Na nossa
sociedade o saber e o conhecimento só são dignos quando cabem na escala do útil
na ordem do capitalismo. O saber só deve ter serventia que possibilite auferir
retorno financeiro e/ou poder econômico e político, senão é mera vaidade,
veleidade ou tolice digna de desprezo, passatempo ou chacota. Apreendi isso ao
longo de uns poucos anos e, assim, nada mais tenho a aprender, pelo contrário,
quero mais ignorar e esquecer o quanto for possível.
Ao longo da vida conheci alguns “Joãos”. “João” era o
self-made man! O homem que aprendeu tudo sozinho na prática. Ele não fez
escola, o bom capitalismo o ensinou tudo o que era útil, importante e
necessário! Sim, João aprendeu observando e ouvindo atentamente os seus
superiores e o patrão! João zombava, insultava e desprezava os
"sabidos". É preciso ser justo: João tinha grande reverencia pelo
saber dos gerentes e burocratas, homens de papel, carimbos, gravata e poder!
Tinha-o ainda pelos self-made man como ele - tão ou mais mesquinhos, oportunistas
e ordinários do que ele próprio. Não podia perder tempo com livros, filmes,
musica. "O homem nasce pra trabalhar, sustentar familia e enricar."
Alguns poucos versiculos da Bíblia bastam e "o trabalho dignifica o
homem!" Recordo-me quando João ria enquanto eu lia Shakespeare. Quando ele
jogou fora meus livros de Wilde, Balzac, Huxley, Orwell, Hemingway,
Dostoievski. João admirava e respeitava apenas o dinheiro - guardava profundo
desprezo e repugnância pelos que estavam abaixo de si na hierarquia do mundo do
trabalho.
Hoje, pai, graduado, as portas de completar 40 anos e sem
acumular nada além daquilo que aprendi nos livros e na vida, pretendo renunciar
a isso tudo - quase nada. Jamais me tornarei um “João”, tampouco aqueles que
ele admira - não se trata de renunciar a humanidade, apenas a moral da
sociedade burguesa. Por isso estou empenhado em não ser útil, tampouco quero
compartilhar coisa alguma. Quem quiser aprender algo com a sociologia ou a
filosofia pode começar por entender que elas não servem pra nada em termos do
que essa sociedade espera, quer e aprecia. Esqueça a poesia, a critica, a
reflexão.
Eu já fui professor da rede publica - um dos mais baixos
ofícios na escala social do trabalho. Sujeito desvalorizado, desmotivado,
desqualificado, desprezado, ornamental, quase inútil! A sociedade arrancou a
aura de respeitabilidade e a sua dignidade. Tenho aqui diante de mim alguns
diplomas, certificados, documentos, nada além de papéis que atestam o desprezo
pela sociedade pelo saber e a cultura. Penso que talvez ela esteja certa. Hoje,
embora não aprecie mais a sociedade por isso, também tenho alguma indiferença
por ele - o saber que me faz pensar e compreender as tramas da sociedade e a
historia e não é capaz de alimentar o meu corpo. Tenho comigo Rilke, Neruda, Paz,
Lorca, Rimbaud, Pessoa, Leminski e somos todos impotentes diante da saudade que
é infinita pela minha filha sem pai. Freud não alivia coisa alguma. Não vale a
pena conhecer Platão, Aristóteles, Descartes, Tocqueville, Marx, Sartre,
Freire, Holanda - não se você precisar trabalhar para sobreviver. O saber que
se adquire por meio deles não faz um trabalhador, quiçá ajuda a fazer apenas um
homem - produto descartável na sociedade. Hoje compreendo Gregor Samsa, Isaías
Caminha, Rieux, Merseault, Gilliat, Alberto Caeiro. Espero apenas livrar-me de todos
eles - quem sabe queimá-los? - e esquece-los todos para poder ensinar algo a minha filha sem ilusões,
temor, ambição, paixão ou raiva. Desapegar, desaprender, desiludir-se.
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