terça-feira, 22 de julho de 2014

Desaprender.


O senso comum - com todas as reservas e o nojo que tenho pela palavra - sustenta que a educação é um processo acumulativo. Sustenta ainda que a vida é um aprendizado constante, pois, eu estou determinado em um processo contrário - pretendo a cada dia acumular menos, se possível dissipar tudo que sei, aprendi e juntei. E nisso, incluo as pessoas.

Há um elevado apreço no imaginário coletivo pela ciência e a técnica e um desprezo generalizado pela cultura e o pensamento. Na nossa sociedade o saber e o conhecimento só são dignos quando cabem na escala do útil na ordem do capitalismo. O saber só deve ter serventia que possibilite auferir retorno financeiro e/ou poder econômico e político, senão é mera vaidade, veleidade ou tolice digna de desprezo, passatempo ou chacota. Apreendi isso ao longo de uns poucos anos e, assim, nada mais tenho a aprender, pelo contrário, quero mais ignorar e esquecer o quanto for possível.

Ao longo da vida conheci alguns “Joãos”. “João” era o self-made man! O homem que aprendeu tudo sozinho na prática. Ele não fez escola, o bom capitalismo o ensinou tudo o que era útil, importante e necessário! Sim, João aprendeu observando e ouvindo atentamente os seus superiores e o patrão! João zombava, insultava e desprezava os "sabidos". É preciso ser justo: João tinha grande reverencia pelo saber dos gerentes e burocratas, homens de papel, carimbos, gravata e poder! Tinha-o ainda pelos self-made man como ele - tão ou mais mesquinhos, oportunistas e ordinários do que ele próprio. Não podia perder tempo com livros, filmes, musica. "O homem nasce pra trabalhar, sustentar familia e enricar." Alguns poucos versiculos da Bíblia bastam e "o trabalho dignifica o homem!" Recordo-me quando João ria enquanto eu lia Shakespeare. Quando ele jogou fora meus livros de Wilde, Balzac, Huxley, Orwell, Hemingway, Dostoievski. João admirava e respeitava apenas o dinheiro - guardava profundo desprezo e repugnância pelos que estavam abaixo de si na hierarquia do mundo do trabalho.  

Hoje, pai, graduado, as portas de completar 40 anos e sem acumular nada além daquilo que aprendi nos livros e na vida, pretendo renunciar a isso tudo - quase nada. Jamais me tornarei um “João”, tampouco aqueles que ele admira - não se trata de renunciar a humanidade, apenas a moral da sociedade burguesa. Por isso estou empenhado em não ser útil, tampouco quero compartilhar coisa alguma. Quem quiser aprender algo com a sociologia ou a filosofia pode começar por entender que elas não servem pra nada em termos do que essa sociedade espera, quer e aprecia. Esqueça a poesia, a critica, a reflexão.

Eu já fui professor da rede publica - um dos mais baixos ofícios na escala social do trabalho. Sujeito desvalorizado, desmotivado, desqualificado, desprezado, ornamental, quase inútil! A sociedade arrancou a aura de respeitabilidade e a sua dignidade. Tenho aqui diante de mim alguns diplomas, certificados, documentos, nada além de papéis que atestam o desprezo pela sociedade pelo saber e a cultura. Penso que talvez ela esteja certa. Hoje, embora não aprecie mais a sociedade por isso, também tenho alguma indiferença por ele - o saber que me faz pensar e compreender as tramas da sociedade e a historia e não é capaz de alimentar o meu corpo. Tenho comigo Rilke, Neruda, Paz, Lorca, Rimbaud, Pessoa, Leminski e somos todos impotentes diante da saudade que é infinita pela minha filha sem pai. Freud não alivia coisa alguma. Não vale a pena conhecer Platão, Aristóteles, Descartes, Tocqueville, Marx, Sartre, Freire, Holanda - não se você precisar trabalhar para sobreviver. O saber que se adquire por meio deles não faz um trabalhador, quiçá ajuda a fazer apenas um homem - produto descartável na sociedade. Hoje compreendo Gregor Samsa, Isaías Caminha, Rieux, Merseault, Gilliat, Alberto Caeiro. Espero apenas livrar-me de todos eles - quem sabe queimá-los? - e esquece-los todos para poder ensinar algo a minha filha sem ilusões, temor, ambição, paixão ou raiva.  Desapegar, desaprender, desiludir-se.


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