terça-feira, 5 de agosto de 2014

A Revolução Esquecida.



Há noventa anos, em cinco de julho, São Paulo amanhecia ocupada por tropas. Sob o comando do general Isidoro Dias Lopes, do major  Miguel Costa e dos tenentes Eduardo Gomes, João Cabanas e os irmãos Joaquim e Juarez Távora começava a “Revolução Paulista”, “Revolução de 24” ou “Revolução Esquecida”. O levante culminou com a ocupação da cidade por 23 dias, forçando o presidente do estado Carlos de Campos a deixar a capital após o bombardeio do Palácio Campos Elísios pelas tropas sediciosas. Foi o maior conflito bélico que a cidade conheceu.  A cidade foi sistematicamente bombardeada por artilharia e aviões do governo federal durante 22 dias consecutivos. Diversas famílias morreram soterradas em suas casas ou feridas por estilhaços. Tiros eram ouvidos durante o dia ou a noite da Avenida Paulista ao Brás, do Belenzinho à Vila Mariana, passando pela Mooca, Perdizes, Ipiranga, Vila Prudente, Bom Retiro e o centro da cidade. Trincheiras e barricadas foram construídas nas ruas. O campanário de diversas Igrejas serviu como ponto de observação ou foram utilizados pela artilharia e franco-atiradores. Tanques de guerra foram usados contra os combatentes na cidade. Essa tecnologia nova de guerra - inaugurada em 1916 em Somme na Grande Guerra -, não fossem os Batalhões de Veteranos Estrangeiros - italianos, russos, alemães, húngaros - que aderiram aos revolucionários, não seriam detidos, causando maior impacto em mortes e destruição. São Paulo virou uma praça de guerra e cerca de um terço da população de 700 mil habitantes empreendeu fuga para o interior do Estado. Um acampamento de refugiados da Cruz Vermelha foi levantado na cidade durante o conflito, naquele que seria ainda um dos invernos mais frios de São Paulo.

Os combates que se iniciaram no centro, região da Estação da Luz, no 5º Batalhão da Força Publica – atual quartel da ROTA -, culminaram com a prisão dos comandantes da Força Pública e da 2ª Região Militar do Exército. O oficial do Exército ainda vestia farda de gala - vinha de uma festa do Consulado dos Estados Unidos no Hotel Esplanada, atrás do Teatro Municipal - quando foi detido pelo Tenente Joaquim Távora, morto dias depois baleado em combate quando comandava um ataque para retomar o 5º Batalhão. Távora havia participado do levante de 1922 no estado do Mato Grosso e deu baixa em 23, conspirando desde então contra o governo federal. O tenente João Alberto que o conhecera na prisão descrevia-o como um “socialista ardoroso”, culto e com “elevado espírito revolucionário.” 

Passados noventa anos, quem recorda e qual a importância desse acontecimento pro Brasil e São Paulo? Por que lembrar-se e refletir sobre 1924? Em 1924 São Paulo ainda era sonho, desejo, paixão. Era o olhar e a cabeça no futuro e os pés e costumes no passado. Era tradição e modernidade, província e metrópole. São Paulo era a cidade dos Barões do Café e dos Capitães da Indústria. Respirava-se o perfume francês, a fumaça das chaminés, dos carros e o estrume. Luzes, urbe, maquinas, mob, mercadorias, idiomas, dialetos, sons, ruídos, aromas, ideias, costumes compunham o caleidoscópio. Classes, contradições, conflitos! Esperança e medo. A Babel do século XX se anunciava. 

Em 1924 a ordem das coisas estava em crise. Toda à ordem – política, econômica, social. A São Paulo metrópole urbana nascia sob as vaias, o repúdio, desprezo, protestos, manifestações, tiros e as bombas das elites tradicionais contra todas as vanguardas. Nascia à força sob o cadáver moribundo da cidade-província do século XIX que insistia em se impor ao século XX. Era a São Paulo dos parnasianos e modernistas, do caipira e do imigrante, do burguês e do proletariado. 

A São Paulo de 24 ainda respirava 17 e 22. Era a cidade assombrada pelo proletariado anarcossindicalista e socialista e os Modernistas iconoclastas. Da Federação Operária e do Partido Comunista. do Bom Retiro, Brás, Bixiga, Barra Funda e Mooca e a dos Campos Elísios, Paulista e Pinheiros. A classe trabalhadora se organizava e fortalecia-se, ao lado da burguesia urbana e industrial. A luta de classes se impunha. Grosso modo, esse é o contexto em que as barricadas se levantam na capital paulista no dia cinco de julho de 1924, continuando a obra de 22 e em homenagem ao segundo ano do levante do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro. 

Com efeito, não é possível vislumbrar o que foi o levante de 24 em São Paulo sem considerar o Tenentismo e as suas diversas tendências - do positivismo ao socialismo, passando pelo integralismo -, bem como as agitações do período , sobretudo, o impacto da revolta anterior carioca (Revolta dos 18 do Forte de Copacabana), a época capital federal no contexto da República Velha – não fosse assim não teria se iniciado exatamente no mesmo dia, como uma homenagem àquele. Eduardo Gomes era ainda um dos sobreviventes dos 18 de 22 ao lado de Siqueira Campos. Na madrugada do sábado, cinco de julho de 1924 São Paulo amanhecia sob o assalto dos revoltosos. Como hoje, na época, sábado era só mais um dia de trabalho. De acordo com José de Souza Martins, “quem tomava o café da manhã no bar e restaurante da Estação da Luz às 6h não notou nada. Quem tentou tomar o trem às 8h30 na mesma estação descobriu que não havia trens e que a estação fora ocupada por uma tropa da Força Pública comandada por um sujeito magrela, um tal de Tenente João Cabanas, que ficaria famoso.” 

Cabanas durante muito tempo povoou o imaginário popular – o feroz, invencível e cruel comandante da Coluna da Morte - não fosse a malária, teria integrado a Coluna Prestes. Um inquérito feito pelo Governo do Estado de São Paulo após o levante sustenta que os seus subordinados no interior do Estado saquearam, mataram, estupraram, torturaram com o seu consentimento e omissão, entretanto, consta que mandou fuzilar saqueadores no centro da capital desde o dia 05/07 e, notabilizou-se tanto pela ousadia, ferocidade e façanhas em combate quanto pela admiração dos seus subordinados e da população e o deboche contra o Exercito e os oficiais governistas. Após a fuga dos revolucionários, embora não tenha se juntado a Coluna Prestes/Miguel Costa, foi um dos protagonistas na Revolução de 30 que levou Vargas ao poder. Estava entre os que participaram da cerimônia da amarração dos cavalos gaúchos no Obelisco da atual avenida Rio Branco no Rio de Janeiro, atitude carregada de simbolismo e que representa o triunfo total da Revolução de 1930 e a arrogância dos tenentes – guardadas as enormes diferenças históricas, sociais e políticas, impossível negar a influência e a alusão a entrada triunfal a cavalo dos revolucionários mexicanos em 1914 na capital do México. Ao final rompeu com Vargas e ingressou no partido socialista.

A revolta paulista de 24 se insere nesse contexto de convulsões e lutas políticas e sociais no qual a América Latina também experimenta no início do século XX e que se acentua no pós-guerra (194-1918) e a crise na Europa. A luta paulista é uma continuação do movimento iniciado em 22 e que encerra-se apenas em 37 com o Estado Novo – até lá o sangue e a pólvora determinarão os rumos da política pelo país em 24, 25/27, 30, 32, 35 e, pra alguns, até 38. Todavia a organização da classe operária inicia-se muito antes, na década de 10, e a sua ascensão e fortalecimento acirra a luta de classes e mobiliza os Tenentes como alternativa conservadora para a sua contenção.
Se ela não inaugura o período revolucionário brasileiro, nem consegue mobilizar toda a sociedade, na medida em que o Tenentismo não fosse um movimento de massas, ainda assim impulsiona as lutas e evidencia a falência das oligarquias e da sua política, bem como a crise do capitalismo e da República Oligárquica. A maioria da classe trabalhadora reunida em torno dos anarquistas e socialistas acabou não aderindo a luta, sobretudo por questões estratégicas - os trabalhadores exigiam que fossem criadas milícias armadas de trabalhadores sem subordinação aos militares -, embora fossem latentes as divergências ideológicas, todos concordavam com a falência do Estado e a necessidade premente da luta. Ao final, cadáveres foram sepultados às pressas em terrenos baldios e quintais. Os revoltosos apenas deixariam a capital só na madrugada de 28 de julho, quando se retiraram de trem para o interior, bombardeando pontes no caminho, granjeando apoio no Rio de Janeiro, Mato Grosso, Pernambuco, Amazonas, encerrando os combates já no Paraná com o cerco de Catanduvas. Esse cerco durará até março de 1925, mobilizando cerca de 14 mil homens do governo federal, comandados, dentre outros, por Cândido Rondon e Dilermando de Assis (o assassino de Euclides da Cunha), contra 3 mil revoltosos paulistas que esperavam bravamente a chegada dos gaúchos sob o comando de Luís Carlos Prestes - a fusão da coluna dos revolucionários paulistas com a gaúcha formaria a Coluna Prestes que combateria o governo por todo o país até 1927. Deixam para trás apenas em SP cerca de mil mortos - a maioria civis e estima-se em 4 mil o número de feridos além de incontáveis fábricas, casas e armazéns destruídos pelos bombardeios e incêndios. E apesar disso tudo, não há um único monumento que celebre a memória das vítimas e da luta na cidade.

Referencias


http://pos.historia.ufg.br/uploads/113/original_12_-_BORIS_FAUSTO__Uma_Vis%C3%A3o_Republicana_da_Histoira.pdf

https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,a-revolucao-de-1924,398365 

http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,revolucao-de-24-guerra-em-sp-por-reformas-politicas,10277,0.htm

http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi23/topoi23_a09_antecipando_a_era_vargas.pdf

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1107200406.htm

As noites das grandes fogueiras: uma historia da Coluna Prestes. Domingos Meirelles, editora Record.

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