No ultimo dia 03 de junho
fez 90 anos que Kafka morreu desconhecido e ignorado, sob os escombros do
antigo Império Austro-húngaro em Viena. Consta que Kafka tenha sido o
inaugurador do realismo fantástico. Não sei. Não sou especialista na sua obra –
mero leitor despretensioso e curioso. Só sei que o jovem Kafka respirava as
convulsões da transição conturbada do século XIX para o XX. A Grande Guerra na
Europa, o anarquismo e o socialismo afrontando o poderoso capital imperialista
e a ordem burguesa. Kafka nasceu e vivia em Praga, cidade sob a égide dos
sacros impérios germânico e Austro-húngaro. Veio ao mundo no ano em que Marx
faleceu – 1883 – e como o gênio revolucionário alemão era também judeu. Desnecessário comentar
sobre as dificuldades experimentadas pelos judeus na velha Europa cosmopolita, civilizada,
secular e cristã – católica e protestante.
Filho do século
XIX, Kafka foi da geração que empenhou-se em sepultá-lo. O longo século de Napoleão,
Garibaldi, Bismarck e da hegemonia inglesa, do capital, das fabricas, da urbe e da mob. O
complexo, contraditório e explosivo século do desenvolvimento das grandes
potências econômicas, da máquina, da ciência, das metrópoles, da indústria e da
exploração, miséria e agitações. Século em que a opressão, a miséria e a
tradição convivem com o poder, a opulência e a razão e os afrontam. O século
impregnado pelo cheiro de óleo, gás, suor, sangue e pólvora.
Impossível
ignorar. De um lado Tocqueville, Burke, Mill, Bentham, Comte, de outro Marx,
Phroudhon, Blanqui, Bakunin. Quem viveu o início do século XX, estava ainda sob
a influência do pensamento de Darwin, Freud e Nietzsche - por que não Kierkegaard? Não podia ignorar Vitor Hugo, Balzac, Zola, Goethe,
Tolstoi, Dostoieviski, Oscar Wilde, Charles Dickens, Jules Verne. Tampouco a
poesia ardilosa de Baudelaire, Byron, Shelley e Rimbaud. A geração que o
precedeu e a sua sepultaram de forma definitiva o século XIX, do ponto de vista
ideológico, filosófico, estético, científico, moral, ético. O horror da Grande
Guerra encerrou de forma definitiva com as ilusões de desenvolvimento e
grandeza.
Kafka foi um
homem do seu tempo – complexo, contraditório, conturbado. Um homem oprimido
pela sociedade burguesa – a moral e a razão onipotente, onipresente, onisciente. Kafka vivia sufocado pela “mão invisível” da
família patriarcal, da sociedade burguesa antissemita, do Estado burocrático e o Direito
autoritário. Os temas dos seus livros são demasiadamente autobiográficos.
Tratam sobre sujeitos infelizes esmagados por poderes superiores e
irresistíveis muito além da sua compreensão, capacidade ou meios de suportar. Ele era um sujeito
assim - sufocado, impotente, consumido. Funcionário público subalterno e de função burocrática insignificante,
judeu de família da baixa burguesia, graduado em Direito sem vocação ou apreço
pelo oficio das leis.
Foi
contemporâneo de Freud, Rilke, Thomas Mann, Shaw, Ibsen, Proust, Joyce, Yeats,
Pessoa. Viveu o Realismo, Dadaísmo,
Surrealismo, Naturalismo, Modernismo e os estertores do Romantismo. O Processo,
A Metamorfose são em grande parte autobiográficos – Joseph K. é o homem
impotente diante da onipotência e onipresença do Judiciário e a burocracia,
Gregor Samsa é aquele que sente o peso da família, do trabalho e a angustia de
constatar ser apenas útil, descartável, insignificante como um inseto. Carta
ao Pai é algo além de um lamento, um protesto, uma confissão - a revolta do homem oprimido pela família patriarcal burguesa e judia. A obra de Kafka é
um manifesto contra toda a opressão, uma homenagem a sublimação. Kafka é apenas
o homem enquanto tal – inseguro, impotente, instável, limitado, falível. Aquele
que diante da inexorabilidade das condições da existência sublima a injustiça,
a miséria, o medo, a angustia, a opressão. É o homem que resiste com a lucidez
e a serenidade dos insensatos e deslocados sem resignar, capitular ou ceder a obtusa
ordem, moral e racionalidade burguesa. Aquele que recusa a autoridade, rejeita a moral, repudia a opressão burguesas. A
grandeza de Kafka é a sua fraqueza pra soberba moral burguesa – a sua capacidade de
sensibilizar-se e inquietar-se diante do absurdo da sociedade. Kafka é o homem sensível
e frágil – não fraco ou fracassado -, diante da miragem do Leviatã onipotente e
onipresente que tudo esmaga e consome. Kafka, Fernando Pessoa, Lima Barreto,
Camus, Gabo.
O mais assustador, porém fascinante ao mesmo tempo é identificar no começo do século XXI, as mesmas inquietações dos séculos dois séculos anteriores. Consternante é perceber na literatura engajada de Franz Kafka (1883-1924), não apenas a atualidade, mas a sincronia no sentido literal com o sensibilidade humana dentro dos períodos flanados neste texto. Mário Miranda Antônio Júnior conseguiu contextualizar as vozes dos intelectuais comparados e trazer a nós, mais motivos para sempre reler os clássicos. O que pode ser complementado neste texto é a confirmação dada pela obra "Porque ler os clássicos" (1993), de Italo Calvino (1923-1985), sem comentar muito, pois o título já explica por quais razões. A correlação entre Kafka, Fernando Pessoa, Lima Barreto e Camus, apesar de não serem contemporâneos, também não precisa de comentários está de acordo com a ideia dos intelectuais e suas sociedades.
ResponderExcluirValeu pelo comentário Sergio! Acho que qualquer coisa que dissesse sobre Kafka seria pouco, por isso apenas lembrei que como ele Lima Barreto e Fernando Pessoa experimentaram angustias parecidas - do trabalho burocrático maçante, das pressões sociais e familiares, dos fracassos nos relacionamentos pessoais. Por fim, penso que do ponto de vista literário, é incontestável a influencia de Kafka tanto na obra de Camus, quanto de Gabo, entre outros....E essa é maior homenagem ao tímido e angustiado escritor tcheco....
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