quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Homem de papel.

Penso hoje no meu livro. Sobre o que já escrevi, o que dizem sobre o que escrevo e porque escrevo. Em tudo o que já foi dito - que "escrevo bem", que o meu "blog é uma aula", que é "muito foda", etc. Receio pelo lançamento do livro - em relação as expectativas alheias, porque eu não tenho nenhuma. Escrever já foi um prazer, um lazer, um esquecer, um entorpecer, um refazer.  Escrever tem se tornado um enfado, um fardo, quase um dever, um oficio, um sacrifício. Não sei mais escrever e porque escrever. 

No próximo sábado, quando lança-lo, nada espero dele. Apenas que seja o que é: o simples registro de um desgraçado. O relato de um excluído, um fracassado, um marginal, um quase que ousou pretender ser mais do que deveria ter sido e terminou sem antes ser coisa alguma. Assim, espero que seja considerado na justa medida do que representa: nada. As paginas policiais, as estatísticas, estudos ou relatórios assistenciais, sociais e governamentais já bastam pra dizer muita coisa sobre os desgraçados. Os registros de pessoas como eu são feitos com rigor, dedicação e até abnegação por jornalistas, cientistas-pesquisadores, padres, técnicos sociais e políticos diversos. Sem dizer que existe ainda a dita "literatura marginal." Pessoas sem voz, sem vontade, sem razão, sem moral, sem lugar, sem futuro.

Meu registro, todavia, nada mais é que o meu relato. Não pretendo ser o porta-voz ou o representante de coisa alguma. Trata-se apenas da minha experiência e leitura da realidade. Não é um estudo, nem uma reportagem, tampouco um relatório técnico ou uma pesquisa. Não é dever de oficio, obrigação moral ou causa social. Apenas o relato de um sobrevivente. Resistir não é opção e revoltar-se é imperativo. Algo além  disso esta acima das minhas pretensões, razão, posição e capacidade. Há muitos por aí como eu, com mais qualidades, capacidades e ambição. Eu mesmo os conheci em profusão e escala. 

A sociedade e o capitalismo são prolíficos em produzi-los. O capital porque é intrínseco ao modo de produção à exploração e a acumulação e, a sociedade porque é essencialmente tradicional, moralista, reacionária, conservadora, autoritária. Isso não é apenas uma constatação, são verdades históricas. Os dependentes químicos - viciados em crack - que perambulam pelas ruas, becos e vielas de hoje são os bêbados de outrora - fracassados, vadios, vagabundos, marginais. Na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX - apogeu da Revolução Industrial na Europa - foram promulgadas leis contra o consumo de Gin - menos por razões de saúde que por econômicas, morais e de segurança publica. Na América puritana e capitalista do século XIX ao XX a cruzada contra o álcool também orienta-se pelas mesmas razões tanto quanto a atual "Guerra as drogas" - de Nixon e Reagan.

No Brasil o Decreto Lei 3.688 de 1941, no capitulo VII que trata "das contravenções relativas à polícia de costumes", nos artigos 59 e 62 tipificam os delitos de "Vadiagem" e "Embriaguez" e as suas respectivas penas - consta que em 2012 o artigo 59 foi "descriminalizado." Após 25 anos da Constituição Cidadã, leis do "Estado Novo" ainda vigorarem diz muito sobre o Estado e a sociedade brasileiras. Não espanta que "a questão social" no Brasil, a despeito da democracia, seja ainda "caso de policia" - sobretudo as relativas a dependência química e o consumo de drogas ilícitas. O "acolhimento", no âmbito das políticas sociais, articula-se e se estabelece no interior de procedimentos de caráter jurídico-normativos que procedem o controle, a profilaxia e a ordem social. A despeito da democracia, a sociedade - "minorias" com todas as aspas e ambiguidades que cabem a palavra - e o indivíduo seguem a margem das decisões dos homens de Estado e poder - judiciário, políticos, técnicos, burocratas. Conheço o "acolhimento" e a "eficácia" de CRAS, CAPS, SEMTAS, Pronatecs e os "Empregas" governamentais de diversas cidades Brasil afora - conheço-os como usuário, é bom que se diga. Conheço também estatística - já fiz algumas pesquisas -, por isso não acredito em ambos. Só acredito na experiência - prisão, policias, repressão, descaso, abandono, negligencia, omissão, desprezo, demagogia, cinismo, oportunismo, lucro, exploração, miséria, violência.

Pouco mais de seis anos de estudos superiores fizeram nada mais que aguçar o olhar sobre a experiência de duas décadas, vividas na realidade da nossa sociedade e o mercado de trabalho na ordem do capital globalizado. Quase 40 anos, um quarto de século como carne no mercado - nem 6 anos de contribuição somando CLT e serviço publico -, uma década de dependência química e assim se constrói isso - um homem-nada, sem lugar na sociedade, sem esperanças, sem estabilidade alguma, sem patrimônio, renda, emprego e sem futuro. Sobre os escombros e os despojos de incontáveis lugares e pessoas é que se constroem e alicerçam a riqueza, reputação, poder de alguns, a força e a pujança desse Estado funcional, conciliatório e "democrático" na ordem do capital. Por isso penso no meu livro, na minha vida e diante disso, nada espero de ambos, tampouco coisa alguma. 


2 comentários:

  1. O homem de papel, em seu papel refletivo sobre a condição do papel do homem. Tantos papéis, que nos fazem apenas não reconhecer no homem o seu papel. E quantos homens querem com o seu papel, não aceitarem o que um homem impõe a outro homem, por meio de um papel. No entanto o intelectual é um homem de papel. O papel do intelectual é fazer o homem se refletir em seu papel e reconhecer quantos outros papéis são representados pelos homens. Que no final do seu papel, ele desperta na mulher, o que juntos podem fazer, o papel da sociedade.

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  2. Muito bem lembrado e dito, caro amigo Sergio!

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