quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Duas lições sobre o mercado de trabalho.

São diversos, surpreendentes os caminhos que conduzem a reflexão, ao protesto e a luta. Dois fatos foram determinantes no processo que me conduziu ao socialismo e ao marxismo. Refiro-me aqueles que dizem respeito ao mundo do trabalho. Falo da minha relação com o trabalho através do meu pai e da experiência com o grande capital, a época em que fui office-boy em uma corretora de valores. 

Meu pai nunca ficou desempregado. Nunca antes do ano 2000. Ele chegou ao Brasil em 64 com 18 anos e apenas o ensino fundamental I completado. Logo foi trabalhar em uma oficina de autos, aprendendo na prática o oficio de funileiro. Nunca fez qualquer curso ou terminou os estudos. Jamais fez outra coisa na vida até ser demitido em meados de 2001. Apenas em um breve período de tempo durante os anos 80 - quando abriu a própria oficina e depois fechou-a - é que trabalhou sem registro em carteira - cerca de 4 anos. 

As lembranças remontam esse período e a decada de 90. Recordo-me de um homem dedicado ao trabalho, condicionado, bitolado e negligente no lar. Meu pai vivia para o trabalho. Nunca foi em uma reunião de escola, nunca viu meus cadernos, nunca fez lição comigo. Não via TV conosco, não ouvia musica, não saía, não conversava. Eventualmente fazia um churrasco em casa ou no Pico do Jaraguá. Lembro-me vagamente de uma ou outra viagem a praia e ao interior na casa dos parentes da minha mãe. 

Seu ultimo emprego foi de 87 a 2001. Trabalhava das 8 as 18h e, muitas vezes, ainda aos finais de semana - senão em outra oficina.  Meu pai era do tipo antigo, funileiro profissional de outra época. Da época em que as ferramentas não faziam o trabalho, eram só ferramentas. Daquela em que a tecnologia não dominava a oficina ou as ferramentas. Época em que os carros eram outros, as empresas, as relações de trabalho e o mercado idem. Quando os carros exigiam mais do trabalhador que da ferramenta, este era mais valorizado, a demanda maior que a oferta e as contratações eram mais restritas ao mercado formal. Enfim, toda sexta meu pai ficava com os companheiros de trabalho depois do expediente no bar. Voltava pra casa mais tarde e via de regra embriagado. Eu só percebia a sua embriaguez por causa da implicância da minha mãe, na medida em que meu pai sóbrio ou bêbado nunca dispensou atenção aos filhos - nem brincava, nem brigava. 

Disso tudo recordo-me com frequência da sua angustia sempre que conversava com a minha mãe. Embora evitasse isso, embriagado queixava-se e se abria. Sempre falava com revolta, tristeza e indignação do "Cabeção" - um dos sócios da oficina. Consta que essa criatura fosse o sócio "chão da oficina" e o outro - Clóvis - o burocrata. Cabeção, segundo meu pai dizia, ofendia-o e o humilhava sempre e de forma acintosa, sádica e intimidadora. "Velho, inútil, burro, corno" eram adjetivos recorrentes no seu repertório vocabulário. Indignava-me na minha impotência e incompreensão, tanto pela sua petulância e ignorância quanto pela passividade e tolerância do meu pai.  As vezes sentia profunda raiva e tristeza, mas, sempre um contido nojo, desprezo e revolta contra pessoas assim - os poderosos ignorantes e os submissos covardes. Meu pai renunciou voluntariamente a sua família, lar e os melhores anos da sua vida por causa de salário. Submeteu a sua vida e a sua dignidade, sua saúde física, mental e moral a um emprego e salário. Ele se acovardou, adaptou-se e se acomodou. Confiava que se aposentaria lá, mas, dez anos antes foi enxotado sem nenhuma razão do emprego e precisou se humilhar na Previdência até ser aposentado por idade. O país da "casa grande e senzala" é feito de "Cabeções" espalhados pelas "casas de família", comércios, empresas, indústrias - tudo mera extensão dos domínios da "casa grande." Se a exploração e o autoritarismo são intrínsecos ao capitalismo, na ordem senhorial isso é patológico.   

Essa lição eu aprendi antes e fora da cátedra. Em 1994 eu trabalhava na Safic Corretora. Todo dia ia a Bolsa de Valores e a BM&F em São Paulo. Levava um malote de papeis em ambas. Os donos da corretora chamavam-se David e James - sintomático da mentalidade colonizada, eram brasileiros. Entrei lá antes do Plano Real e saí depois. Peguei a conversão e assisti a fortuna de alguns - não que não fossem ricos, mas, o Real injetou uma onda de capital que inundou o mercado de ações. David tinha conta pessoal no Banco Francês e Brasileiro e James no Bank Boston e Citibank. A corretora operava pelo Bic Banco e o BCN. A empresa dividia-se por um imenso corredor: de um lado, a parte da plebe - administrativa - de outro, a operacional, com a "mesa de operações" e os corretores. Eram a nobreza, os cavaleiros da távola redonda em torno da mesa do Rei Artur - Rei James ou David, na verdade. Raros eram os corretores que frequentavam o lado da plebe - o que eu trabalhava como office-boy. Lembro-me do José - que era irmão mais velho do David -, do Alvarinho - filho de um corretor antigo da Bolsa -, do Hilton - o único negro da mesa - e do velho Boris - um senhor que dependendo do humor conversava um pouco. José falava sempre comigo porque adorava boxe e nessa epoca eu era pugilista amador. Alvarinho, embora fosse um pouco mais velho do que eu e muitas vezes mais rico, demonstrava alguma admiração, respeito, curiosidade e inveja por mim - talvez porque eu fosse indiferente aquela porra toda e, por isso, fosse mais livre, corajoso e ousado do que ele. Uma vez quando fui trabalhar com o lado esquerdo do rosto todo arrebentado, após uma luta com um rapaz do São Paulo FC,  ele veio falar comigo demonstrando grande respeito e admiração e o José furioso por eu ter que ir a Bolsa com o rosto deformado. 

Eventualmente pegava o elevador com o David ou o James. Cena cômica, pois, apesar de todo o dinheiro e da segregação, no elevador, as vezes, nos encontrávamos - a plebe e a nobreza. Ele raramente olhava pra pessoas e cumprimentava-as com demasiada discrição e indisfarçável má vontade. Sem falar, sem se mexer, apenas acenando de forma quase imperceptível com a cabeça e os olhos - talvez pra não comprometer o penteado. Interessante era constatar que tanto ele quanto o James fossem jovens milionário - cerca de 40 anos cada. James tinha um Porsche e uma Mercedes blindados. David um Volvo e uma Pajero também blindados. Um morava no Morumbi e o outro em Moema. Nunca demonstrei absolutamente nada por eles. Permanecia impassível ou indiferente a presença de ambos e nunca dirigi-lhes a palavra - olhava sem demonstrar coisa alguma e apenas quando era inevitável. Percebia que quase sempre por isso causava mal estar generalizado - como podia um reles office-boy não admira-los?! 

Eles andavam sempre acompanhados por um séquito de bajuladores e o segurança - um jovem brutamontes da PM. Esse segurança conversava muito comigo - ele se admirava por um rapaz franzino como eu lutar boxe e ser relativamente bom e entendido do assunto. Eu era peso Galo e gostava do que fazia, por isso me dedicava e fazia bem! Quase sempre revelava os podres das elites nos finais de semana nas suas propriedades - o de sempre: drogas, álcool, sexo. As vezes, me acompanhava na Bolsa de Valores e nunca deixava de ostentar as armas que portava - 357, 45, 9 mm e uma 12 no porta malas. Dirigia um Gol GTI que adorava acelerar a 100 km na Paulista. Quando saí de lá brigamos porque eu não quis devolver o uniforme de goleiro do time da corretora. Disse que se eu não o devolvesse ele teria que ir em casa buscar. Eu disse que estaria esperando e ele ficou puto porque não pensou que eu diria isso. Ao final, devolvi, pois, percebi que se não fizesse isso eles me enrolariam pra pagar a minha rescisão e esse cretino iria em casa mesmo. 

Hilton - o único negro - era o que mais se destacava no séquito. Precisava fazer isso, afinal, era o único negro da casa.  Prestava-se ao ridículo papel de Bobo da corte dos superlativos medíocres. Hilton vivia ao redor de David e do seu irmão José. David quase sempre o ignorava, José o humilhava e James desprezava-o. Hilton era patético no seu esforço em ser engraçado e subserviente. Estava sempre rindo ou fazendo rir. Lembro-me que eventualmente, alguns corretores atiravam cédulas de Dólar pelo vão das escadas ou pela janela para ele ir pegar - se conseguisse chegar a tempo no térreo e pega-las, poderia ficar com elas. Hilton sempre descia os 12 andares correndo, nem sempre conseguia pegar, nunca deixou de divertir os senhores do engenho. Eu oscilava entre o desprezo que merecia e a pena que despertava. Desprezava mais porque ele não apenas aceitava isso como ainda sentia-se um privilegiado e honrado por isso. Hilton se sentia acima da plebe por causa das migalhas, chutes e afagos vindos da Casa Grande para o seu mais dócil e obediente animal adestrado.  Assim, decidido a manter a sua posição de capacho, Hilton se esforçava em diferenciar-se dos demais valendo-se de artifícios a altura da sua mediocridade, como a delação, a intriga, o deboche e a humilhação dos demais funcionários subalternos. Nunca sequer falei com ele e nem ele comigo. E essas foram as lições mais importantes que aprendi sobre o mundo do trabalho no capitalismo e que me conduziram, assim, ao socialismo; sem que nenhum professor me ensinasse e nem tivesse encontrado em teoria alguma. E essas verdades do capital fazem tantos socialistas e ensinam mais que muitas aulas, burocratas e teorias que supõem a vã filosofia ou sociologia ....



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