É o trabalho objeto de destaque na nossa tradição, perpassando toda a sociedade. A sociedade, alias, funda-se sob o postulado da positividade do trabalho. Repousa sob a sentença: "O trabalho dignifica o homem!" Nem sempre foi assim, muito embora tenha se assentado por quatro séculos no trabalho escravo. De um lado, a tradição católica do trabalho como fardo do pecado e da pobreza, de outro, a protestante - Lutero e Calvino - assentada nos pressupostos do individualismo puritano que considerava a pobreza uma demonstração de deficiência moral e a prosperidade uma virtude. Nessa perspectiva, os pobres mereciam ajuda, mas essa era dada de uma posição moral superior - qualquer semelhança com a visão de muitas ONG's no Brasil não é mera coincidência. Nessa perspectiva, o trabalho deveria ser incessantemente buscado para a glória de Deus, na medida em que seria uma atribuição dele pela qual os indivíduos servem ao bem comum e porque toda a vida do cristão é também um culto. Assim, eram sinais da graça de Deus aos seus eleitos uma vida materialmente próspera, com preponderância do trabalho sem ostentações e excessos materiais. Calvino recomendava austeridade e trabalho duro como virtude máxima e modelo de conduta do cristão, opondo a vida contemplativa a vida ativa.
O Brasil português foi o único país
que existiu por cerca de 3 séculos. O país dos aventureiros,
desbravadores, exploradores e guerreiros de Dom Sebastião. Terra de senhores,
patriarcas, fazendeiros, fidalgos, escravocratas. Homens em busca de
riquezas, terras e glória pela cruz e pela espada. Terra de desterrados,
mercenários, saqueadores, fanáticos. Esse foi o Brasil do colono predador - do
pau-Brasil, das pedras preciosas e ouro. O Brasil do colono explorador -
cana-de-açucar e engenho. O Brasil da escravidão indígena e negra, do tráfico e
mercado de escravos.
Apenas no século XIX, com o Império e
a abertura econômica, financeira, política e cultural - mercado editorial,
imprensa, universidades, colégios - e a influencia dos imigrantes europeus e
norte-americanos - pós guerra de Secessão Americana - e a incipiente indústria
é que os valores ibéricos acerca do trabalho passariam a ser confrontados e
questionados. O liberalismo inglês, os ideais revolucionários franceses e
norte-americanos - democracia, republica -, a força do progresso, da
ciência, dos direitos, do humanismo e do capital são irresistíveis. No
crepúsculo do século XIX o positivismo, a republica e o capital se impõem,
modificando paulatinamente a visão ibérica e católica do trabalho na sociedade.
É a época de Mauá e Alves Branco, Nabuco e Ruy, Tobias Barreto e Capistrano de
Abreu, Silvio Romero, Teixeira Mendes e Antonio Feijó, Hipólito da Costa,
Castro Alves, Álvares de Azevedo e Machado de Assis, Ferrez e Militão.
Não há ruptura, antes contradições,
resistência, acomodação, continuidade. O "Brasil português" persiste
sob o olhar compassivo do "Brasil brasileiro." Ato continuo do
escravocrata ao capitalista. O Brasil do Comendador Breves - estima-se que
tivesse mais de 6 mil escravos a época da Abolição em mais de 100 fazendas -
sobreviveu ao Matarazzo, persiste a Camargo Correa e Maggi. Os escravos,
latifundiários, rendeiros, posseiros, grileiros, senhores, coronéis, camponeses
e operários reprimidos, explorados, perseguidos, assassinados de outrora
persistem pelos séculos, convivem sem embargo com a democracia.
O processo de estigmatização do
índigena como indolente e preguiçoso, iniciado com chegada dos
portugueses durante a colonização, passados 500 anos essa ideia ainda resiste
na nossa sociedade, atestando que pensa-se como os colonizadores, com relação
ao lugar ocupado pelo trabalho nas sociedades indígenas em comparação com a
civilização ocidental. De fato, a importância do trabalho na nossa sociedade
pode ser medida pelos sentidos e significados que ele alcança para além da
esfera produtiva. A Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei 3.688 de 1941) no
Artigo 59 é bastante esclarecedora. Herança da Era Vargas-Estado Novo -
populismo trabalhista autoritário -, como as leis trabalhistas, o Senai, BNDES,
FIESP, Ministério do Trabalho. Embora tenha poucos efeitos práticos, diz muito
a respeito do que a sociedade pensa sobre determinadas pessoas e/ou tipos de
comportamentos, na medida em que mais ou menos aceita-as ou tolera. Trata-se de
uma sociedade que coloca o trabalho como o valor supremo do indivíduo,
reduzindo o homem ao seu oficio, condicionando a cidadania ao trabalho. Se é
deplorável admitir que um homem deva ser qualificado apenas pelo seu oficio,
tanto mais que ainda hoje prevalece tal mentalidade na nossa sociedade. Esses não são valores “humanos”, são valores do
capital, portanto, não podem servir para estabelecer laços de solidariedade
entre os homens. Durkheim vai chamar essa solidariedade, a resultante da
divisão do trabalho de orgânica e, a solidariedade resultante do homem, apenas
enquanto compartilha da espécie humana e das suas condições de existência, de
solidariedade mecânica. Na primeira ele é solidário por motivos exteriores,
portanto, não havendo coação acaba a solidariedade. Talvez sejam por esses
motivos que atualmente as iniciativas de responsabilidade social empresarial,
desenvolvimento local sustentável, economia solidária, entre outras, proliferem
como alternativas compensatórias às praticas impostas à sociedade pela agenda
global co capital. Talvez isso seja ainda um indicio do esgotamento desse
modelo econômico e de organização da sociedade.
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