domingo, 23 de novembro de 2014

O lugar do trabalho.



É o trabalho objeto de destaque na nossa tradição, perpassando toda a sociedade. A sociedade, alias, funda-se sob o postulado da positividade do trabalho. Repousa sob a sentença: "O trabalho dignifica o homem!" Nem sempre foi assim, muito embora tenha se assentado por quatro séculos no trabalho escravo. De um lado, a tradição católica do trabalho como fardo do pecado e da pobreza, de outro, a protestante - Lutero e Calvino - assentada nos pressupostos do individualismo puritano que considerava a pobreza uma demonstração de deficiência moral e a prosperidade uma virtude. Nessa perspectiva, os pobres mereciam ajuda, mas essa era dada de uma posição moral superior - qualquer semelhança com a visão de muitas ONG's no Brasil não é mera coincidência. Nessa perspectiva, o trabalho deveria ser incessantemente buscado para a glória de Deus, na medida em que seria uma atribuição dele pela qual os indivíduos servem ao bem comum e porque toda a vida do cristão é também um culto. Assim, eram sinais da graça de Deus aos seus eleitos uma vida materialmente próspera, com preponderância do trabalho sem ostentações e excessos materiais. Calvino recomendava austeridade e trabalho duro como virtude máxima e modelo de conduta do cristão, opondo a vida contemplativa a vida ativa.
O Brasil português foi o único país que existiu por cerca de 3 séculos. O país dos  aventureiros, desbravadores, exploradores e guerreiros de Dom Sebastião. Terra de senhores, patriarcas,  fazendeiros, fidalgos, escravocratas. Homens em busca de riquezas, terras e glória pela cruz e pela espada. Terra de desterrados, mercenários, saqueadores, fanáticos. Esse foi o Brasil do colono predador - do pau-Brasil, das pedras preciosas e ouro. O Brasil do colono explorador - cana-de-açucar e engenho. O Brasil da escravidão indígena e negra, do tráfico e mercado de escravos.  
Apenas no século XIX, com o Império e a abertura econômica, financeira, política e cultural - mercado editorial, imprensa, universidades, colégios - e a influencia dos imigrantes europeus e norte-americanos - pós guerra de Secessão Americana - e a incipiente indústria é que os valores ibéricos acerca do trabalho passariam a ser confrontados e questionados. O liberalismo inglês, os ideais revolucionários franceses e norte-americanos - democracia, republica -, a força do progresso,  da ciência, dos direitos, do humanismo e do capital são irresistíveis. No crepúsculo do século XIX o positivismo, a republica e o capital se impõem, modificando paulatinamente a visão ibérica e católica do trabalho na sociedade. É a época de Mauá e Alves Branco, Nabuco e Ruy, Tobias Barreto e Capistrano de Abreu, Silvio Romero, Teixeira Mendes e Antonio Feijó, Hipólito da Costa, Castro Alves, Álvares de Azevedo e Machado de Assis, Ferrez e Militão. 
Não há ruptura, antes contradições, resistência, acomodação, continuidade. O "Brasil português" persiste sob o olhar compassivo do "Brasil brasileiro." Ato continuo do escravocrata ao capitalista. O Brasil do Comendador Breves - estima-se que tivesse mais de 6 mil escravos a época da Abolição em mais de 100 fazendas - sobreviveu ao Matarazzo, persiste a Camargo Correa e Maggi. Os escravos, latifundiários, rendeiros, posseiros, grileiros, senhores, coronéis, camponeses e operários reprimidos, explorados, perseguidos, assassinados de outrora persistem pelos séculos, convivem sem embargo com a democracia.
O processo de estigmatização do índigena  como indolente e preguiçoso, iniciado com chegada dos portugueses durante a colonização, passados 500 anos essa ideia ainda resiste na nossa sociedade, atestando que pensa-se como os colonizadores, com relação ao lugar ocupado pelo trabalho nas sociedades indígenas em comparação com a civilização ocidental. De fato, a importância do trabalho na nossa sociedade pode ser medida pelos sentidos e significados que ele alcança para além da esfera produtiva. A Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei 3.688 de 1941) no Artigo 59 é bastante esclarecedora. Herança da Era Vargas-Estado Novo - populismo trabalhista autoritário -, como as leis trabalhistas, o Senai, BNDES, FIESP, Ministério do Trabalho. Embora tenha poucos efeitos práticos, diz muito a respeito do que a sociedade pensa sobre determinadas pessoas e/ou tipos de comportamentos, na medida em que mais ou menos aceita-as ou tolera. Trata-se de uma sociedade que coloca o trabalho como o valor supremo do indivíduo, reduzindo o homem ao seu oficio, condicionando a cidadania ao trabalho. Se é deplorável admitir que um homem deva ser qualificado apenas pelo seu oficio, tanto mais que ainda hoje prevalece tal mentalidade na nossa sociedade.  Esses não são valores “humanos”, são valores do capital, portanto, não podem servir para estabelecer laços de solidariedade entre os homens. Durkheim vai chamar essa solidariedade, a resultante da divisão do trabalho de orgânica e, a solidariedade resultante do homem, apenas enquanto compartilha da espécie humana e das suas condições de existência, de solidariedade mecânica. Na primeira ele é solidário por motivos exteriores, portanto, não havendo coação acaba a solidariedade. Talvez sejam por esses motivos que atualmente as iniciativas de responsabilidade social empresarial, desenvolvimento local sustentável, economia solidária, entre outras, proliferem como alternativas compensatórias às praticas impostas à sociedade pela agenda global co capital. Talvez isso seja ainda um indicio do esgotamento desse modelo econômico e de organização da sociedade. 


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