Ele era da favela. Aprendeu com os parceiros do asfalto uma profissão ou oficio. Ensinaram-lhe como instrumentalizar o seu talento, vocação ou dom na ordem do capital. Conquistou o seu lugar na ordem burguesa. Hoje ele é um respeitável cidadão, profissional, militante, pensador, artista. Mais que isso, "apropriou-se do saber em seus próprios termos" no interior da ordem capitalista-burguesa! É o triunfo da conciliação de classes, na medida em que as culturas periféricas são aceitas e até cultuadas pela casa grande, de modo em que se colocam no mercado criado a imagem e semelhança da burguesia para ela mesma. Afinal, como construir a revolução ou o socialismo sem a tutela ou o consentimento da burguesia? Insisto, como assim em "seus próprios termos" se se reproduz o modo de produção
capitalista numa perspectiva com uma roupagem meramente mais adequada a
ordem democrática no bojo da crise do capitalismo e/ou welfare state tardio e falido? Na teoria o discurso é contra o sistema, na prática e na essência o reproduz, incluindo em seus próprios termos - por meio da produção e consumo - os antes excluídos ou marginalizados - nada de poder político, econômico, emancipação, superação ou revolução. Como ele existem muitos em todos esses segmentos de produção e outros. Tenho um amigo fotografo consagrado na Providencia - com duas décadas de trabalho social no morro. Ele é filho de traficante, nasceu no morro. Aprendeu o oficio da fotografia com estrangeiros. Expôs na semana do Brasil na França, participou de diversos documentários e dá entrevistas no mundo todo sobre o seu trabalho com jovens na comunidade. Consegue atuar com recursos do exterior - ao menos recusa as máfias políticas cariocas. Não tenho a pretensão e nem competência pra avaliar o seu trabalho - não tenho esse direito e nem é esse o objetivo. Tenho consciência da importância do seu trabalho diante das mazelas e misérias cotidianas que muitos jovens ali enfrentam - apenas como recurso para a sobrevivência. No entanto, não cabe numa perspectiva de construção do poder popular, do socialismo ou da revolução - como muitos insistem em atribuir ingenuamente ou deliberadamente. A questão não passa por indivíduos incluídos ou incorporados a essa ordem, antes a formação de sujeitos que possam entende-la e a partir disso pensar em estratégias coletivas para aceita-la, nega-la e supera-la.
De fato, ele não é exemplo de coisa alguma, senão de um sujeito que venceu na ordem burguesa - e que a aceita -, a despeito das suas condições adversas. Herói de pobre - se existe! - não é bem sucedido no capitalismo, deve ser quem luta contra ele! O "empreendedor" da miséria. É intrínseco ao capitalismo a exploração e acumulação, portanto, para cada "winner" como ele haverão incontáveis "losers" pavimentando o caminho de uns poucos. É a meritocracia dissimulada sob a capa do manto sagrado do discurso "social", do bovarismo, do empreendedorismo, da domesticação do capitalismo, do capitalismo para todos. Exercício de retórica e/ou fabrica de ilusão para poucos deslumbrados ou cínicos. Me lembra das assistentes sociais do presídio, do Primeiro Emprego e do Pronatec, dos professores do Senai e Senac, que sob a tutela do governo e do patronato pretendiam adestrar os "marginalizados" para o mercado - a tábua de salvação para a desigualdade e a injustiça!
Por isso nas comunidades que atuei, seja de forma independente, ligado a partidos ou como profissional, sempre busquei a formação - ainda que no âmbito de ações de geração de renda. Desse modo, o Senac me dispensou do Programa Educação para o Trabalho (PET) - porque eu explicava pra eles que a Coca-Cola (financiadora do programa) apenas precisava de mão-de-obra barata e adestrada, a despeito da importância de uma formação que privilegiasse a critica da relação capital x trabalho e o papel social e emancipador-transformador do trabalho. Assim foi também no Senai e Sesi, escolas a serviço da FIESP-FIRJAN. Nas comunidades sob intervenção estatal no bojo de políticas habitacionais e urbanização que contemplavam remoções, seja de forma independente ou ligado a partidos e governos, privilegiei entidades de luta dos bairros, colaborando nas estratégias de mobilização e organização popular, criando ou fortalecendo conselhos populares ou de bairro - conforme as características e demandas coletivas. Foi assim em Cubatão, Bertioga, Grajaú em SP. Enfim, não ensino - quando ensino! - nada do ponto de vista do mercado, nada nobre ou instrumental, ligado a tecnologia ou a ganhar dinheiro e captar recursos, barganhar com a burguesia ou os poderosos, instigo apenas a refletir sobre o seu lugar nesse sistema e as suas condições e possibilidades, sobre o jogo da burguesia e os seus interesses dissimulados na conciliação conveniente no interior da luta de classes. Ensino a recusar de maneira consciente os incontáveis representantes, defensores, conciliadores, pacificadores, vendidos e intermediários. A se mobilizar, resistir, revoltar, organizar e até a rezar para Jesus Malverde - como diria Glauber: "mais fortes são os poderes do povo!". E logo menos, se depender de mim, será o inferno nas perifas pra cima da burguesia do RN. Sem nem foto, teatro, musica, artesanato, colaboração ou debate.....Quem sobreviver verá.
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