Não
são poucos os abusos e crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra a
sociedade, sobretudo, contra as classes populares. São tantos quanto variados e
perversos. Vejo-os cotidianamente, praticados sistematicamente por indivíduos
mantidos, protegidos e/ou acobertados pelo Estado. O Leviatã brasileiro é
imenso, grotesco, voraz, perverso, implacável, insaciável. Mata, tortura,
violenta, explora, consome, exaure, intimida, humilha. Há, muitas vezes,
método, disciplina, rigor, apreço, sofisticação nas suas ações, sobretudo,
quando tangencia, se omite ou negligencia deliberadamente. Nesses casos,
apela-se a retórica, a desqualificação, intimidação, interdição do interlocutor
e, sobretudo, a técnica e a burocracia, a lei e ao corporativismo. Reveste-se de
uma aura de superioridade e poder o homem publico brasileiro - em todos os
níveis na hierarquia da administração - que o coloca a parte e acima das
massas, conforme desfrute de prerrogativas, privilégios e leis especiais.
Revestido pelos imensos poderes do ente estatal - que lhe asseguram condição
privilegiada - o indivíduo se impõe acima do cidadão, da sociedade, da lei
tanto mais quanto a sua elevada posição na hierarquia publica permite,
paradoxalmente no interior de uma ordem "democrática de direito"
(estritamente nominal) - o mantra é a expressão de da Matta em "Carnavais,
malandros e heróis" ("você sabe com que está falando?").
As
origens dessa característica no Brasil remontam a colonização, herança da
tradição ibérica, cuja fonte é o Estado patrimonial português - definido com
rigor e precisão por Sergio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. O primeiro
observa os processos de socialização caracterizados pela
"cordialidade" e o outro aponta o traço "personalista" -
senhorial - do português - ambos avessos a impessoalidade e a burocracia. Marx
por sua vez, lembra o que era o Estado na França em 1851, explicando que o
"poder executivo, com a sua enorme organização burocrática e militar, com
a sua maquina de Estado, complicada e artificial, com o exercito de meio milhão
de funcionários, ao lado de um exercito que conta ainda meio milhão de homens,
o espantoso organismo parasitário que envolve como rede o corpo da sociedade
francesa, fechando-lhe todos os poros." Lênin segue e sustenta: "numa
republica democrática, o Estado continua a ser o Estado, isto é, conserva o seu
caráter distintivo: transformar os funcionários, servidores da sociedade, seus
órgãos, em senhores da mesma." Em uma palavra, o Estado não é senão o
poder organizado de uma classe com vistas a oprimir outra. Dito isso, passo a
palavra pro lado de cá do balcão.
Por razão que ignoro José precisava do documento de identidade - não há lei que obrigue Zé a portar documentos, na verdade, ele tem o direito de reivindica-lo e o Estado a obrigação de providencia-lo. Procedimento simples: um pedaço de papel, um formulário padrão, uma foto e a coleta das digitais. No Estado brasileiro isso custou um mês pro José - cinco visitas ao departamento responsável, três madrugadas perdidas na fila porque recusou pagar um lugar mais a frente, vendido por negociantes atravessadores com a conivência ou cumplicidade dos funcionários da casa. Após isso tudo e apesar dos dados dispostos na sua certidão de nascimento, o burocrata que o atendeu ainda errou o nome da sua genitora no documento e o identificava deliberadamente como pertencente a outra etnia! Maria precisava de um prontuário - ganha um doce quem acertar o que é um prontuário! Após três visitas ao departamento e ouvir desculpas diversas, Maria convenceu-se que um prontuário deve ser mais do que mero formulário que pode ser preenchido por qualquer pessoa alfabetizada, afinal, não havia naquele departamento uma única pessoa capaz de preenche-lo! Diante disso, seu companheiro Raimundo registrou uma reclamação no site da Ouvidoria da Secretaria de Saúde, recebeu uma mensagem padrão com um numero de protocolo e isso foi tudo - um ano depois, Maria ainda não tem o prontuário e pagou um medico particular pra conseguir realizar os exames necessários, afinal, seu caso era a suspeita de um tumor. Não sabemos se os funcionários aprenderam ou estão dispostos a aprender a preencher formulários durante o seu horário de expediente, nem quantos cidadãos adoeceram ou morreram por falta de exames que exigem o referido documento, menos ainda quantos protocolos foram gerados pela Ouvidoria, tampouco o numero de servidores que suicidaram-se ou foram penalizados em decorrência de tão desproporcional medida diante de tamanho descaso.
Por razão que ignoro José precisava do documento de identidade - não há lei que obrigue Zé a portar documentos, na verdade, ele tem o direito de reivindica-lo e o Estado a obrigação de providencia-lo. Procedimento simples: um pedaço de papel, um formulário padrão, uma foto e a coleta das digitais. No Estado brasileiro isso custou um mês pro José - cinco visitas ao departamento responsável, três madrugadas perdidas na fila porque recusou pagar um lugar mais a frente, vendido por negociantes atravessadores com a conivência ou cumplicidade dos funcionários da casa. Após isso tudo e apesar dos dados dispostos na sua certidão de nascimento, o burocrata que o atendeu ainda errou o nome da sua genitora no documento e o identificava deliberadamente como pertencente a outra etnia! Maria precisava de um prontuário - ganha um doce quem acertar o que é um prontuário! Após três visitas ao departamento e ouvir desculpas diversas, Maria convenceu-se que um prontuário deve ser mais do que mero formulário que pode ser preenchido por qualquer pessoa alfabetizada, afinal, não havia naquele departamento uma única pessoa capaz de preenche-lo! Diante disso, seu companheiro Raimundo registrou uma reclamação no site da Ouvidoria da Secretaria de Saúde, recebeu uma mensagem padrão com um numero de protocolo e isso foi tudo - um ano depois, Maria ainda não tem o prontuário e pagou um medico particular pra conseguir realizar os exames necessários, afinal, seu caso era a suspeita de um tumor. Não sabemos se os funcionários aprenderam ou estão dispostos a aprender a preencher formulários durante o seu horário de expediente, nem quantos cidadãos adoeceram ou morreram por falta de exames que exigem o referido documento, menos ainda quantos protocolos foram gerados pela Ouvidoria, tampouco o numero de servidores que suicidaram-se ou foram penalizados em decorrência de tão desproporcional medida diante de tamanho descaso.
Já
o João foi tirar a sua CTPS. Após agendar pelo site do MTE pra depois de mês e
meio, no dia marcado, soube pelo zeloso funcionário que o atendeu que sendo a
dele a terceira via - a primeira naquele Estado -, mesmo apresentando a
anterior danificada e o documento de identidade, conforme tenha se declarado
solteiro, precisava apresentar também a certidão de nascimento! Por isso João
não pode ser contratado numa rara oportunidade de emprego, porque recusaram
fazer o documento pelo qual ele tem direito, posto que o zelo com o cumprimento
das exigências burocráticas seja muito mais importante que o direito ou o
trabalho de um João qualquer! Até hoje João ainda não tem emprego, carteira e
nem conseguiu entender a relação intrínseca e fundamental entre carteira de
trabalho, certidão de casamento ou de nascimento - sem duvidas, no entanto, que
João têm mais com o que se preocupar!
Sebastião
foi em janeiro a Defensoria Publica. Parece óbvio que quem procura esse órgão
não dispõem de recursos pra pagar um advogado ou rábula! Tanto quanto que não é
preciso ser nem um ou outro pra supor que um processo legal deve assentar-se em
bases formais! Tião foi atendido por uma funcionária arrogante e entediada que
ouviu-o com displicência e de forma absolutamente mecânica - sequer olhou-o ou
preencheu qualquer papel, tampouco lhe pediu isso. Agendou o seu retorno pra
maio e pediu que providenciasse um rol de documentos. Após 4 meses e outras
tantas idas e vindas e telefonemas, no dia agendado a funcionária disse que ele
não preenchia os requisitos para ser atendido por aquela Defensoria! Disse-lhe
ainda que ele havia sido "orientado" sobre isso antes - como assim,
"orientado" com agendamento pra retorno marcado?!!! Sebastião não
aceitou isso e foi a corregedoria. Mais arrogância, desinteresse e
corporativismo. Quando ele foi a Defensoria, pretendia apenas ser atendido,
tudo o que conseguiu foi um transtorno e uma reclamação! Registrou tudo
rigorosamente, juntou e anexou documentos e após seis meses conseguiu dar
entrada na ação judicial. Nenhum servidor foi punido ou advertido - alegou-se
que não havia indícios de má-fé, só incompetência mesmo e isso se tolera e
incentiva! -, a despeito da indolência, leniência, negligência, ainda hoje,
Sebastião não tem as visitas ao seu filho regulamentadas - em nenhum momento o
Judiciário considerou o seu direito ou interesse, tampouco o da criança, a
despeito do que diz a Constituição e o ECA, nada valem diante do Estado e da
máquina.
Ranata
e Paulo foram ao Conselho Tutelar. A criança "ocupa" uma casa
abandonada com o pai e divide o espaço com diversos usuários de crack. Aos nove
anos ela é viciada, abusada e explorada sexualmente. O conselho aconselhou-a a
procurar a Delegacia da Criança e Adolescente, pois, a situação envolvia crime
e risco. A delegacia orientou-os a procurar o CREAS, que por sua vez mandou-os
ao Ministério Publico que devolveu-os ao conselho. Nessa roda viva grotesca e
cínica da indiferença e do crime, com exceção da policia que alegou que isso
era um problema de "assistência social", todos os demais alegaram
perigo de vida e que não podiam ir sem escolta policial - se é perigoso pra
eles, imagine pra uma criança! Enfim, dias depois todos estavam na câmara
municipal debatendo redução da maioridade penal e os direitos das crianças e
adolescentes, menos a menina de nove anos, que segue viciada e abusada com a
cumplicidade do Estado e dos seus apaniguados.
A
jovem Joana celebra o SUAS e o ECA em uma sessão do parlamento municipal.
Durante a sua explanação, ela citou as conquistas e os avanços sociais em
termos de direitos adquiridos, políticas de Estado e serviços públicos
diversos! Joana nunca precisou tirar segunda ou terceira via de um documento,
nunca precisou ir numa unidade ou posto de saúde, nunca esteve num CAPS, CRAS,
CREAS, Conselho Tutelar pra ser atendida, nunca precisou da Defensoria. Ela apenas
conhece as leis, teorias, documentos, relatórios, planilhas, pesquisas e alguma
coisa que a mídia diz. Receio que ela não sabe que a única informação visível a
população em uma repartição publica é aquela sobre o artigo 331 da lei 2848/40
do Estado Novo - desacato a servidor! Por isso tenho tanto desprezo por ela
quanto pelo Estado burguês e os seus medíocres e miseráveis lacaios e, mais
ainda pelos que como Joana ignoram essa realidade e os consideram
trabalhadores! Não é apenas a posição na produção que faz um trabalhador. Não é
apenas o consumo que determina a classe, tampouco o direito, o estatuto ou a
estatística por si só correspondem a realidade! A única realidade são as
relações de poder e a luta de classes no interior da sociedade burguesa
capitalista, o resto é demagogia, fanfarronice ou tolice!
Nenhum comentário:
Postar um comentário