João era o chefe dos investigadores da delegacia na cidade de Guarulhos (SP) em 2001. Naquela época eu trabalhava pra Secretaria Municipal de Segurança Publica, coletando, cadastrando e mapeando os boletins de ocorrência de homicídio doloso, roubo e furto de veículos. Ele devia ser uns cinco ou seis anos mais velho que eu, portanto, predominava o respeito e o clima amistoso no ambiente quase sempre tenso e sinistro. Ele frequentava a mesma academia que eu, em horário distinto e compartilhava ainda a curiosidade intelectual, a boemia e o bom humor. Não se enquadrava nos estereótipos do policial civil padrão - velho desleixado e/ou jovem mal encarado bombadão.
Uma vez passou o dia acompanhando meu trabalho e conversando comigo, no final me convidou pra uma cerveja em um bar ali próximo. Ficamos conversando sobre política, direitos humanos, violência, historia do Brasil, pobreza e as expectativas com o governo petista na cidade. Um músico tocava MPB e rock nacional - ele pediu Raul Seixas e eu Gil. Bebemos bastante, ao final, ele se insinuou e me convidou pra dormir com ele. Sem conseguir disfarçar o espanto, recusei respeitosamente e expliquei que meu barato outro. Ele se desculpou, afirmando que se reconsiderasse podia procura-lo. Nunca mais me procurou, embora jamais tenha evitado o contato ou eu recusado a aproximação. No ano seguinte deixei o cargo e saí da cidade, nunca mais ouvi falar nele.
Claudio era o escrivão daquela delegacia. Homem de meia idade, policial típico da instituição - desleixado, arrogante, reacionário, indolente, dissimulado, oportunista e corrupto. Certa vez almoçamos juntos. Sem cerimônias me ofereceu os seus serviços. Disse que vendia e "esquentava" armas, providenciava portes, arranjava negócios vantajosos com carros com despachantes "amigos" - João confirmou que a sua Gran Cherokee era mercadoria dele e que o próprio delegado afiançava e intermediava muitos dos seus negócios automobilísticos.
O tenente Paulo era o chefe da segurança de um shopping na zona norte paulistana - prestador de serviços. Eu era o gerente da pista de kart entre 95 e 96. Paulo estava afastado da corporação. Aquela época era oficial da ROTA, envolvido em diversas ocorrências de morte, podia se dedicar a segurança pessoal e patrimonial privada. Com indisfarçável orgulho e satisfação, afirmava que o "seu barato era matar vagabundo!" Ostentava a sua contabilidade macabra como compensação a sua aparência frágil e modos discretos - era homem de baixa estatura, fala mansa, gestos contidos, olhar sereno. Na sua equipe, lembro que naquele distante 96, havia um investigador chamado Luiz que chamava a atenção - era o chefe do segundo turno. Muito alto, forte, jovem, boa pinta. Dependente químico - viciado em cocaína e crack -, estava afastado das suas funções na policia civil e devido a sua amizade com o oficial militar prestava serviços no shopping. Uma vez, num happy hour no final de 95, após muitos chopps na praça de alimentação e o encerramento das atividades, abastecidos de muitas latas de cerveja e pó fomos correr durante algumas horas na pista de kart. Em meados de 96 saí do shopping e também nunca mais tive noticias deles. Uma vez ele me flagrou com uma vendedora na escada de emergência, me informou sobre as câmeras, regras do estabelecimento e me pediu discrição, não levou o caso adiante como demonstração de camaradagem - nesses casos o procedimento era o esculacho, suborno ou registro de ocorrência e demissão por justa causa. Até me informou sobre locais mais apropriados pra aventuras sexuais no shopping.
Hoje, reflito que a despeito dos avanços institucionais em matéria de direitos humanos no bojo do incremento das instituições democráticas, nas corporações prevalece ainda indivíduos e arranjos corporativistas e personalistas desse tipo. Na pós em Direitos Humanos na USP, nos batalhões da PM e delegacias em Guarulhos, cárceres no Estado de São Paulo conheci e encontrei com diversos tipos assim. Trata-se da legitimação, reprodução e reificação da ordem estabelecida - autoritária, arcaica, patrimonialista, burguesa. A questão não é jurídica, técnica, científica ou moral, antes atravessa todas as instituições que perpassam a formação dos indivíduos, sendo, portanto, histórica, política e econômica no que diz respeito a organização da sociedade, relações de poder no interior da luta de classes. O mais é cinismo, retórica, oportunismo e/ou bovarismo. E o jornalixo sensacionalista, no bojo da omissão publica e política, há pelo menos duas décadas cotidiana e rigorosamente também cumpre o seu papel no sentido de promover o estado policial junto a sociedade, naturalizando a barbárie, banalizando a democracia..
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