sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

"Estado policial", hegemonia e tradição autoritária.

É bastante comum, quando falamos em "Estado Policial", as pessoas logo imaginarem aparelhos repressivos como a Gestapo (nazista), a GPU/NKVD soviética ou os DEOPS e DOPS daqui. Grosso modo, tratam-se de aparelhos repressivos do Estado, órgãos responsáveis pela vigilância, controle e repressão social - trabalhadores, sindicatos, opositores políticos e sociais. Muitos desses órgãos agiam à margem da lei, organizando grupos de extermínio, sabotagem e terrorismo de Estado. 

A Gestapo nazista era responsável pela "segurança interna" do Reich. Promovia investigações oficiais e extra-oficiais até dentro do Partido Nacional-Socialista. Foi protagonista na conspiração da "Noite das Facas Longas" em 1934 - expurgo nazista -, no apoio aos Einsatzgruppen na frente oriental e na caça à opositores nos diversos países ocupados pelo Reich. Os homens da Gestapo eram especialistas em ações de vigilância, espionagem, sabotagem, tortura, terrorismo e contra-terrorismo. 

A GPU/NKVD foi o alicerce do regime Stalinista na URSS. Responsável pela repressão aos opositores reais e potenciais - militares, políticos, intelectuais, trabalhadores, artistas -, tanto na URSS quanto no exterior, encarcerando e exterminando em profusão e escala. No Brasil, o DEOPS foi o responsável pela brutal repressão aos trabalhadores, sindicatos, imprensa operária e partidos políticos, sobretudo o PCB durante a década de 20. Na década seguinte, no contexto pós-revolução de 30 e 32, a Insurreição Comunista de 35, o movimento Integralista e a criação da Ação Nacional Libertadora (ANL, bloco suprapartidário contra a ascensão do fascismo no Brasil), após a anistia de mais de 400 presos políticos em meados de 37 (Macedada), o militar (integralista) Olímpio Mourão Filho com apoio do alto comando das Forças Armadas e do DEOPS cria o "Plano Coen" - suposto plano de conspiração comunista para tomar o poder no país -, justificativa para o golpe de Vargas e a instauração da ditadura do "Estado Novo".  Já o DOPS da ditadura civil-militar de 64, foi o responsável pela repressão, torturas, extermínio e desaparecimento de opositores, bem como pela articulação da Oban - Operação Bandeirantes, comando de caça, extermínio e desaparecimento de opositores do regime financiada por empresários. Grosso modo, foram essas as principais organizações que caracterizam esses regimes autoritários e compõe o imaginário  acerca do que vêm a ser um "estado policial". 

Eu vou por outro caminho, dentro dos parâmetros desse meio - que não é um espaço acadêmico - e dos objetivos a que essas linhas se propõe, isto é, dialogar com o público leigo, suscitar uma reflexão e instigar a pesquisa e o aprofundamento sobre o assunto. Assim, cabe a pergunta: é possível existir um "estado policial" numa democracia? Caso seja, como ele se organiza, funciona e se caracteriza? 

Na Alemanha nazista da Gestapo, o estado policial precede o III Reich de Hitler. A tradição militar da velha Prússia vinha desde a época do II Reich de Bismarck e do Kaiser Guilherme II, persistindo durante toda a República de Weimar que sucedeu a monarquia. O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazista) é o produto acabado dessa sociedade militarizada. Não fosse essa arraigada tradição militar, os nazistas seriam apenas um grupo radical de extrema-direita com ideias exóticas sobre arianismo, antissemitismo e anticomunismo. Ocorre que o programa nazista, fundado nessas premissas, apelava ainda ao discurso ultranacionalista e radicalmente contrário à República de Weimar e ao Tratado de Versalhes. Cortejava os militares e veteranos da Grande Guerra - Hitler, Göering, Hess, Epp, Röhm, Keitel, Jodl, Döenitz, Sepp Dietrich, dentre diversos outros da cúpula do Reich eram veteranos. 

Após a tentativa mal sucedida do golpe em Munique em 1923, o partido nazista resolve ampliar e fortalecer as suas milícias - forças paramilitares do partido. Os militares veteranos assumem a tarefa de criar as milícias nazistas, inspirados pelas forças fascistas italianas sob o comando do jornalista e também veterano de guerra Benito Mussolini - Il Duce. Quando Hitler se torna chanceler em 1933 as milícias nazistas - SA, SS e a Juventude Hitlerista - já estão consolidadas e são uma realidade no partido e no cenário político alemão. Após a morte do presidente Hindenburg em 1934, dá-se a militarização acelerada da sociedade com as leis de Nuremberg, o rearmamento, o serviço militar obrigatório e a expansão da Juventude Hitlerista nos ambientes escolares. 

A época de Vargas - sobretudo após o Estado Novo - o nazifascismo é a alternativa dada pelo capital e a burguesia à ameaça bolchevique e ascensão da classe trabalhadora. No Brasil, o protagonismo dos militares na política vêm desde a República e, mesmo após o fim da "república da espada", eles continuaram por meio de clubes militares e dos gabinetes destinados às Forças Armadas a incidir sobre a vida política do país. Após o governo do marechal Hermes da Fonseca e a crise econômica gerada pelo fim da Grande Guerra, as agitações políticas e sociais, o avanço das organizações e lutas da classe trabalhadora culminam com o "Tenentismo". O Tenentismo foi um movimento militar de oficiais de baixa patente, insatisfeitos com a crise - política, social e econômica - em que agonizava a "República Velha". Essa nova geração de militares, formada na Escola Militar sob influência da "missão francesa", era a elite política-militar do país, o "soldado cidadão", conforme a tradição francesa. Por outro lado, eram desprestigiados pelos velhos oficiais de alta patente, herdeiros da República e das lutas que a consolidaram até a primeira década do século XX. Contudo, mais próximos da vida política e social do país, os Tenentes conquistaram a simpatia de amplos setores da sociedade e constituíram a base de um movimento organizado como resposta da burguesia e classe média urbanas à ascensão do proletariado e a crise das oligarquias.


Toda essa agitação política e social no país, ao longo de toda a República Velha, com protagonismo dos militares, favorece a naturalização na sociedade da militarização da política. Ao mesmo tempo em que promove a imagem de salvadores da pátria, moralizadores da política, guardiães das instituições e da ordem, etc. Esse é o ponto. Não há "estado policial" sem uma forte adesão popular, sem sólidas bases na sociedade e a construção da militarização dá-se à partir do protagonismo dos militares na vida política do país. Através do controle e da articulação de diversos aparelhos ideológicos de formação social (mídias, escolas, igrejas, parlamento, partidos, sindicatos, judiciário), constrói-se a hegemonia do militarismo na sociedade e do "estado policial". Foi assim com o fascismo, o nazismo, o stalinismo, Vargas e a ditadura de 64 - em todos esses regimes e épocas, a hegemonia deu-se por meio de forte aparato de propaganda e formação. 

A eleição do atual presidente do Brasil é o ápice de um projeto de militarização da sociedade que sempre esteve presente desde a República. Ora avançando, ora recuando, conforme as exigências do capitalismo e as pressões internas e externas condicionadas pelos seus estágios e crises, na tradição da "dependência" e do "capitalismo periférico". O processo de militarização da sociedade brasileira, a despeito dos diversos avanços democráticos, assenta-se na Anistia de 79, momento em que os terroristas de Estado que torturaram, executaram e desapareceram com civis ficaram impunes, não foram processados, julgados e penalizados. Muito pelo contrário, diversos ainda foram condecorados, promovidos e passaram à vida pública, construindo prósperas carreiras políticas na área de segurança pública e na iniciativa privada. 

A esse respeito, a lista é imensa, portanto, destaco apenas os mais notórios. No Brasil, o coronel Erasmo Dias e o general Sérvulo da Mota Lima, após serviços prestados ao Exército, foram agraciados com a Secretaria de Segurança de São Paulo. Erasmo Dias foi ainda consultor de diversas empresas privadas de segurança, como a Protege. O general Sérvulo, notório fascista, era favorável a pena de morte, encarceramento em massa e a castração de pobres como política de controle de natalidade. O general Viana Moog também foi premiado com a Secretaria de Segurança paulista, por serviços prestados no combate a Guerrilha do Araguaia. 

Assim como Klaus Barbie (Gestapo), o "carniceiro de Lyon", por exemplo, que foi consultor militar na Bolívia (entre 62 a 82). Consta que Barbie colaborou com a CIA - recrutado pelos EUA como espião após a II Guerra - para a captura de Che Guevara naquele país. Walter Rauff, por sua vez, foi da SS e assessor de Heydrich no Serviço de Segurança (SD). Foi ainda responsável por um Einsatzkommando (grupo móvel de extermínio de opositores e judeus) na África. Após a guerra, colaborou como espião para a Alemanha Ocidental e o Mossad.  No Chile, ajudou Pinochet a organizar a DINA (polícia secreta) e foi protegido pela ditadura chilena até a sua morte em 1984. Alois Brunner foi também da SS, assistente de Eichmann e comandante de campo de internação na França, responsável pela deportação e execução de dezenas de milhares de prisioneiros. Após a guerra, fugiu para o Oriente Médio e viveu no Egito como traficante de armas até conseguir asilo na Síria. Foi consultor do partido Baath, colaborando no treinamento em espionagem e técnicas de interrogatório e tortura. Viveu na Síria desde meados dos anos 60 e não se sabe ao certo quando morreu, apenas que viveu protegido sob o regime Assad. 

Ao lado da impunidade e do acesso à vida pública e política na democracia, amplos setores da mídia alinhados com o arbítrio e credores dos militares, cumpriam a importante tarefa de promover o revisionismo histórico (suavizar a ditadura) e cultuar a imagem das forças armadas e policiais. Assim, desde a década de 80 e até agora, a mídia brasileira é prolífica na produção do dito "jornalismo policial".  Do periódico icônico Notícias Populares aos programas de rádio Gil Gomes e Afanásio Jázadji, passando aos televisivos O povo na TV e Aqui Agora, até chegarmos ao Brasil Urgente, Cidade Alerta, Na rota do crime, Operação Policial, Balanço Geral, Operação de risco, entre os diversos depravados e sanguinários das TVs locais, cumprindo a missão de cultuar as forças policiais, a repressão e o arbítrio

Bolsonaro não chegou só a presidência. Também a onda ultrarreacionária não é um fenômeno espontâneo das massas que surgiu da crise política pós 2013 e reeleição do PT em 2014. Tal qual o neoliberalismo não é um projeto do Temer-MDB, Aécio-PSDB, surgindo pós 2016. As bases desse projeto se encontram lá atras, na crise do capital em 2008 e a sanha autoritária sempre esteve aí, latente, mais ou menos dissimulada, sistematicamente destilando o seu ódio à democracia, direitos humanos, sociais, movimentos populares, "minorias", pobres - as classes perigosas. Ao mesmo tempo em que cultua as forças militares e policiais, promovendo a imagem do policial à figura dotada de super poderes, qualidades e virtudes superiores aos demais - e inferiores - da sociedade. Não bastam as armas e a lei ao seu lado, é preciso a mídia para assegurar junto à opinião pública a sua autoridade e superioridade - legal, material, ética e moral -, que por sua vez, demandam obediência e respeito. 

O chamado "jornalismo policial" é essencial pro projeto de militarização da sociedade e a consolidação do "estado policial". Ele é que funda a base de sustentação ideológica desse modelo de sociedade. Por isso, não basta promover a glorificação do policial/militar, é preciso demonizar os seus inimigos, quais sejam, os marginais - aqueles que se situam as margens do direito e desamparados pelas políticas públicas e sociais, destituídos da cidadania. Aqueles que questionam essa ordem e confrontam o status quo. 

No "estado policial", o agente policial/militar é onipotente, onipresente e onisciente. Por isso ele é chamado a desempenhar as funções dos civis e políticos - o contrário é inconcebível! Assim, o policial é um sujeito polivalente, capaz de resolver questões de segurança, assistência social, educação, saúde e até previdenciárias. Nesses programas, num quadro, vê-se o corajoso policial caçando traficantes na favela, no outro, vemos o altruísta policial ajudando uma transeunte a dar à luz na viatura. Na outra cena, vemos os nossos valentes e abnegados defendendo o direito do cidadão de bem de ir e vir, massacrando a manifestação de estudantes que reivindicam o mesmo direito através do transporte público! Por fim, chegamos ao ápice da sanha repressora e sanguinária com a ocupação de comunidades por forças policiais e militares, com o pacote de terror completo: intimidações, torturas, abusos de autoridade, estupros, extorsões, desaparecimentos e execuções sumárias. Tudo sistematicamente justificado, minimizado e apoiado pelos diversos segmentos midiáticos. Aquilo que não é possível encobrir, minimiza-se sob a retórica do "caso isolado" para não macular a instituição, como se a mesma não respondesse pelos indivíduos que ela forma, treina e a representa. 

Enfim, o "estado policial" na versão brasileira não é a completa antítese do estado democrático de direito. Aqui, ele não começa quando o outro acaba. No Brasil, desde a república oligárquica que ele paira sobre a sociedade, conforme os estágios do capitalismo e a correlação de forças políticas e sociais. O "estado policial" é o "fiel da balança" no jogo da burguesia com a classe trabalhadora, e a sua presença ostensiva na política desde tempos remotos, com a sistemática construção da hegemonia pelos aparelhos ideológicos, assegura à sua naturalização e a adesão da sociedade. 

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