quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Memórias da miséria

Segunda estive na casa que nasci, cresci e passei trinta anos da minha vida. Fazia dez anos que não colocava os pés ali. As casas dos anos 40, 50 e 60, quase todas desapareceram. Algumas resistem em ruínas, como a minha. Senti uma melancolia profunda que não sei explicar. Não tenho apego à bens materiais. Também não tenho saudades daquele bairro ou da minha infância e adolescência. Muito menos das pessoas. Ao contrário, tenho péssimas recordações de tudo por lá. 

Ali a época da inocência passou rápido. Você precisa se preparar pra realidade rápido, digo, o mundo dos adultos - exploração, violência, abusos, excessos, assédio, instabilidade, baixezas e vilanias de todo o tipo. Havia uns vizinhos desafetos da minha mãe. O filho deles estudava conosco - tinha a idade do meu irmão mais novo. Assim, éramos colegas de escola e de rua, brincávamos juntos. Lembro que os pais dele ora nos desprezavam, ora nos maltratavam. Sempre de maneira mais ou menos sutil, maliciosa, fazendo provocações e piadas que a nossa inocência não nos permitia compreender. Éramos motivo de chacota e/ou hostilidades por causa da antipatia entre adultos. 

Havia um menino que ia sempre em casa - era filho de uma amiga da minha mãe. Devia ser uns dois anos mais velho que eu. Sempre brincávamos de bonecos - super-heróis da Marvel de plástico. Eu tinha muitos, vendia-se em sacos com cinco ou mais bonecos. Ele sempre furtava alguns e eu nem me dava conta. Um dia a mãe dele foi em casa e o fez devolver tudo debaixo de pancada. Não entendi nada na hora, fiquei até com pena dele. Depois passei a reproduzir e criei o hábito de furtar coisas. Me tornei um adolescente cleptomaníaco - furtava tudo, sem qualquer critério ou razão. Um dia fiz isso numa loja da fotóptica com a minha mãe - peguei um filme de máquina fotográfica, tinha 14 anos à época. O vendedor viu e me entregou pra minha mãe. Ela ficou envergonhada e enfurecida. Apanhei como nunca antes na vida - fiquei com marcas, arranhões, hematomas pelo corpo todo. 

Em casa, era muito comum a violência como recurso pedagógico - espancamento, ameaças, ofensas, gritos. Violência física e psicológica eram recursos naturalizados pela sociedade e sempre utilizados. Entre amigos, todos relatavam essas situações, muitas vezes eu mesmo as presenciei.

A minha mãe era jovem - aos 24 tinha dois filhos. Meu pai era ausente, vivia pra trabalhar. Ela ressentia-se da vida doméstica e por viver na cidade grande, sozinha, afastada da sua família e convívio. Na infância, ela relatou certa vez que seu pai era um homem muito severo e bruto - sempre batia em todos; filhos, companheira, animais. Sua mãe, para conter os 6 filhos, também não abria mão da pedagogia da força e do medo. Enfim, nem preciso dizer que ela reproduzia isso em casa,  acrescida à frustração pela vida doméstica ainda jovem. Foi isso tudo que aprendi naquela casa naquele bairro.

Havia uns caras que moravam ali próximo, coisa de dez anos mais velhos que eu - adolescentes, enquanto eu ainda era criança. Recordo que enquanto brincávamos, às vezes, eles vinham conversar com a gente, provocar e tinha uns dois ou três que sempre comentavam comigo: "você tem uma mãe muito boa". "Sua mãe é muito boa, né?" Ingênuo, eu confirmava. Depois de um tempo, conforme a expressão debochada e os olhares maliciosos, fui entendendo do que se tratava. Lembro como se fosse ontem a raiva que sentia. Comentei com meu pai, mas, ele não deu muito bola e eu fiquei com alguma raiva dele também. 

Aos 19 anos eu lutava boxe. Uma vez um homem 20 anos mais velho que eu, mais ou menos, falou uma bobagens pra minha mãe na rua. Esse infeliz sofreu todo o meu acúmulo de raiva contida. Peguei ele sem aviso na porta do seu local de trabalho. Bati tanto que ele ficou desacordado e foi parar no PS do bairro. Me arrependo profundamente disso. 

A minha adolescência foi de muita violência e pequenos delitos. As brigas na escola, desde a infância eram constantes, reproduzindo o padrão da sociedade e o ambiente doméstico. Os delitos iam desde furtos no supermercado - chocolate, doces, bolachas -, à venda da rua - refrigerantes, doces, cigarros, picolés. Na escola, aos 12/13 anos, participava de uma espécie de quadrilha com uns colegas pra furtar nas salas de aula. Íamos sempre em 3: um ficava na porta vigiando e os outros vasculhavam estojos, carteiras e mochilas pra pegar o que pudéssemos. Sempre subíamos pras salas na hora do intervalo, nunca furtávamos por razões óbvias a nossa própria sala. Não sei como, nunca fomos pegos, jamais pagamos por isso. 

As drogas vieram aos 13, o álcool e o tabaco por volta dos 11. Sou da geração em que o álcool consumido em casa pelos adultos era compartilhado - "com moderação" - com as crianças. Mas os porres começaram aos 11 na escola e nas festinhas do bairro. Tinha um cara na minha rua, mudou-se pra lá quando eu tinha 13 anos. Meu irmão brincava de Comandos em Ação com o filho dele. Ele era jovem, devia ter uns 30 e poucos anos, o filho 11. Era representante comercial da Kitano e da Antárctica. Festeiro, as suas festas eram memoráveis - muito churrasco, salgados, doces e bebidas alcoólicas, sobretudo cerveja, até o último homem cair. Ele era muito simpático, boa praça, alto astral. Eu, meu irmão e mais uns colegas da rua éramos sempre muito bem vindos à sua casa. E ele não fazia cerimônias em compartilhar as bebidas conosco. Nas festas, a gente ficava lá num canto se embriagando e divertindo e sempre que ele passava o papo era: "Rubens, meia noite é dia?" E ele repetia rindo: "MEIA NOITE É DIA!" Voltei várias vezes carregado de festas na casa dele. Posso dizer que aprendi a beber igual "gente grande" na casa dele. Comecei a trabalhar com 15 anos, aí entrei de vez pro mundo dos "homens" e já tinha assunto de "adultos" pra conversar com ele, sempre acompanhados de muita cerveja. 

Hoje tenho consciência de que isso tudo prejudicou o meu processo de formação, em todos os aspectos - físicos, cognitivos, emocionais, morais. Isso, porém, não é um mea culpa, tampouco um julgamento ou linchamento de determinados indivíduos. Apenas não tenho mais ilusões quanto às pessoas e a nossa cultura, as relações sociais e o processo de formação dos sujeitos em dadas condições. Estou aqui pra arrefecer o fardo e remover máscaras, revirar a memória e expor a miséria e a chaga, mostrar que o que está aí hoje é resultado do que foi ontem. Aprendi a resolver tudo por meio da violência em casa e no bairro - na base do grito, do tapa, da ameaça e do medo. Que "se apanhar na rua apanhará em dobro em casa". A viver em excesso - abusar do álcool, cigarros, drogas, pois, a rotina de escassez nos impõe aproveitar as oportunidades. Descobri que o que importa é levar vantagem em tudo, "o mundo é dos espertos". Que a malícia é sabedoria, é saber dissimular as intenções e manipular as pessoas e situações. A lição é simples: direito é para os fracos, os fortes conquistam tudo por meio da força e malícia. E por fim, que as mulheres são criaturas fracas, inferiores e que necessitam de proteção em troca de submissão. Por isso "homem não chora", não demonstra sentimentos ou qualquer afeto e, o contrário é "afeminado", razão de chacota e desprezo. 

Talvez por isso não tenha nenhuma nostalgia por lá. Tenho poucos contatos daquela época, muito distantes, tanto quanto minha memória e consciência permitem. Alguns, soube que morreram, outros seguem sobrevivendo lá mesmo, acumulando dividas, bens, filhos, frustrações, levando uma vida medíocre e obtusa, arraigados aos seus preconceitos e ilusões. Vários, após uma vida errática e de diversas limitações e privações, alcançaram a promessa da prosperidade e da redenção pelas palavras de um "pastor" de ovelhas desgarradas e desvalidas, tanto quanto desnutrido e moribundo nas suas pretensões e potencialidades. Um deus à sua imagem e semelhança, cuja compaixão e amor não são irrestritos e incondicionais, mas de acordo com o seu mérito. Um deus que apenas pune de maneira indiscriminada todos aqueles que a ele não se submetem e/ou não tolera. Uma igreja que cumpre reforçar a sua visão reacionária de mundo, justificando as suas posturas e ideias machistas, misóginas, racistas, homofóbicas, violentas, antidemocráticas e antissociais através da bíblia. É triste ver a ruína de tudo - casa, bairro, pessoas, futuro. E é demasiada a melancolia e impotência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário