Serviço
Social e América Latina: a atualidade da teoria crítica diante da ofensiva
neoliberal e autoritária[1].
Mario Miranda Antonio Junior[2]
As tendências teóricas do Serviço
Social na América Latina, inserem-se no contexto da oposição e resistência às
ditaduras militares instauradas no continente entre os anos 60 e 70 do século
XX e a redemocratização à partir dos anos 80 - no Brasil esse movimento surge
no final da década de 70 e ficou conhecido como “movimento de reconceituação do
Serviço Social”. Com exceção de Cuba, esse processo caracteriza a América
Latina em geral, sobretudo, a parte Sul do continente, dominada nesse período
por ditaduras militares de extrema-direita. Assim, essa reflexão propõe debater
tais tendências no contexto brasileiro à luz das transformações políticas na
América Latina, inserida na ordem do capitalismo dependente e periférico.
Do ponto de vista sociopolítico, é importante
destacar dois aspectos fundamentais nesse processo: a Guerra Fria e a histórica
hegemonia norte americana no continente. Há ainda, do ponto de vista econômico,
a crise do Welfare State na Europa nos anos 70 e a ascensão do neoliberalismo.
Após a Segunda Guerra, sobretudo nos anos 50 e 60, os movimentos
anticolonialistas avançam na África, Ásia e no mundo árabe, culminando em
longos conflitos e a perda de importantes mercados para as nações capitalistas
centrais, colocando a América Latina em evidência. É nesse pano de fundo que se
dá o debate das ciências sociais sobre o capitalismo na América Latina, no bojo
do seu processo histórico de formação social e o modo de produção no estágio da
acumulação primitiva do capital (MARX, 1989).
Assim, esses são os determinantes objetivos que demandam e privilegiam à
teoria crítica como interlocutora do Serviço Social no seu processo de
reconceituação teórico-prático.
De fato, na perspectiva do
materialismo histórico, Marx sinaliza que o processo de acumulação primitiva
remonta ao período do Renascimento, entre os séculos XIV e XVI, variando
conforme as regiões por toda a Europa. Período em que ocorre a ascensão da
burguesia manufatureira e mercantil, o fim da servidão, as grandes navegações e
descobrimentos e o estabelecimento dos Estados Absolutistas. Assim, destaca:
“O prelúdio da revolução que criou a base do modo
capitalista de produção ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras
décadas do século XVI. Com a dissolução das vassalagens feudais, é lançada ao
mercado de trabalho uma massa de proletários, de indivíduos sem direitos, que
“por toda parte enchiam inutilmente os solares”, conforme observa acertadamente
Sir James Stewart. Embora o poder real, produto do desenvolvimento burguês, em
seu esforço pela soberania absoluta, acelerasse pela força a dissolução das
vassalagens, não foi de modo algum a causa dela.” (MARX, 1989, p. 833).
O processo de acumulação primitiva,
que produz tanto o assalariado quanto o capitalista, conforme Marx, “tem suas
raízes na sujeição do trabalhador”. Contudo, foi um processo gradual em que
inúmeros fatores convergiram para a ascensão da burguesia e o desenvolvimento
da acumulação primitiva. O Renascimento foi fundamental, no entanto, a Reforma
Protestante não foi menos importante. Aliás, a Reforma é produto do
Renascimento. Nos países protestantes a burguesia melhor se estabelece e
desenvolve, conforme a maior tolerância em relação à usura e aos negócios, a
ciência e a imprensa, a glorificação do trabalho e da parcimônia, liberdade de
culto e dos dogmas da igreja católica, separação entre Estado e Igreja - não no
sentido de “Estado laico”, mas, de igreja nacional ao invés de subordinação ao
Papa. Assim o Protestantismo logo se espalhou pela Inglaterra, Escócia, Suíça,
Holanda, França, Dinamarca, Suécia, Alemanha.
Nessa perspectiva, tanto a invenção
da prensa de Gutenberg quanto a Reforma Protestante foram determinantes para a
consolidação da burguesia, expressões acabadas da liberdade de pensamento,
expressão e de produzir conhecimento e novas relações sociais. A primeira pôs
fim ao monopólio da produção do conhecimento pela Igreja Católica, a outra
estabeleceu a ética protestante em contraposição à escolástica, disseminando a
ideia do labor em oposição à contemplação. Da prosperidade, parcimônia e
tolerância em oposição à pobreza, a opulência e a ortodoxia - os alicerces da
ética burguesa, conforme Weber (1999). Temos aqui, a base ideológica para a
“sujeição do trabalhador” indicada por Marx (1989) nas origens do
capitalismo.
Perry Anderson (1989), por sua vez
destaca que o Renascimento foi fundamental para a consolidação do Estado
absolutista moderno, pelo redescobrimento do direito romano e da tradição
política grega clássica. As diversas transformações que ocorreram na Europa
entre os séculos XV e XVI alteraram profundamente a correlação de forças,
consolidando a burguesia enquanto classe ascendente, sepultando de uma vez por
todas a sociedade medieval. As mudanças estabelecidas no âmbito da vida
econômica e cultural na Europa exigiram, consequentemente, modificações na
estrutura política. Assim, segundo Anderson (1989):
“A superioridade do
direito romano para a prática mercantil nas cidades residia pois não somente
nas suas noções claras de propriedade absoluta, mas também nas suas tradições
de equidade, nos seus critérios racionais de prova e no relevo dado a uma
magistratura profissional, vantagens que os tribunais consuetudinários
normalmente não ofereciam. A aceitação do direito na Europa renascentista era
assim um sinal da difusão das relações capitalistas nas cidades e no campo:
economicamente ela correspondia aos interesses vitais da burguesia comercial e
manufatureira”. (Anderson, 1998, p. 26).
O desenvolvimento da ideia de
propriedade privada absoluta na sociedade decorre do incremento da produção, da
ampliação da divisão do trabalho e da complexidade das relações sociais
demandando maior centralização do poder político. A ascensão de uma nova classe
social - a burguesia - e a ampliação do comércio impõem medidas que culminam
com a consolidação dos Estados Absolutistas no Ocidente.
“As monarquias absolutas introduziram o exército permanente,
uma burocracia permanente, o sistema fiscal nacional, a codificação do direito
e os princípios do mercado unificado. Todas estas características parecem ser
eminentemente capitalistas: uma vez que coincidem com o desaparecimento da
servidão, uma instituição nuclear do modo de produção feudal original na
Europa, as descrições do Absolutismo por Marx e Engels como um sistema de
Estado representativo de um equilíbrio entre a burguesia e a nobreza, ou mesmo
como uma dominação total do próprio capital, sempre pareceram plausíveis”.
(Anderson, 1989, p. 15).
Entre os séculos XIV e XVI, Marx
observa que dá-se na Inglaterra, ao lado do fim da servidão, a expropriação de
terras dos camponeses e dos bens da Igreja Católica, adquiridos pela burguesia
ascendente, produzindo uma massa imensa de mão de obra barata e disponível à
exploração pela nova classe detentora da propriedade e meios de produção. Esse
processo, culmina naquilo que Marx chamará de “legislação sanguinária contra os
expropriados à partir do século XV”, de modo a sujeitá-los à nova ordem. Assim,
explica:
“Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das
vassalagens feudais e com a expropriação intermitente e violenta, esse
proletariado sem direitos, não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente
com a mesma rapidez com que se tornavam disponíveis. Bruscamente arrancados das
suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite para
o dia, na disciplina exigida pela nova situação. Muitos se transformaram em
mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maioria dos
casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda em toda a Europa
ocidental, no fim do século XV e no decurso do XVI uma legislação sanguinária
contra a vadiagem. Os ancestrais da classe trabalhadora atual foram punidos
inicialmente por se transformarem em vagabundos e indigentes, transformação que
lhes era imposta”. (MARX, 1989, p. 851).
Não é um processo linear e
cumulativo de ações e acontecimentos iniciados no Renascimento que culminam com
a ascensão da burguesia - e do capitalismo -, mas, a totalidade de
transformações econômicas, sociais e políticas é que a consolida como classe
hegemônica na disputa com a nobreza nos estertores do feudalismo.
Outro acontecimento importante na
ascensão da burguesia e determinante para a expansão marítima e comercial e,
consequentemente, os descobrimentos, a colonização e a acumulação primitiva
foram as Cruzadas - movimento militar-cristão com o objetivo de combater os muçulmanos
e ocupar a Palestina (Terra Santa). As Cruzadas se iniciaram no século XI e
estenderam-se até o XIII, ao longo de nove expedições militares ao mundo árabe.
Por sua vez, o fracasso do movimento em expulsar os muçulmanos e ocupar a
região, enfraqueceu a nobreza e o clero na Europa, ampliou a crise econômica,
conforme endividou os reinos e paralisou o comércio com o oriente. Esse cenário
favoreceu o incremento da manufatura e a busca de novas rotas de comércio e
mercados, sobretudo no norte da África, ocupada pelos portugueses desde o
início do século XV - Ceuta em 1415. Por fim, a luta contra os muçulmanos
prosseguiu até o final do século XV na Europa - Granada, 1492 -, quando
finalmente os árabes - e judeus - foram expulsos da Península Ibérica, consolidando
definitivamente os reinos de Portugal e Espanha como reinos guerreiros,
conquistadores e navegadores.
A conquista da América e o processo de acumulação primitiva
Grosso modo, conforme Marx, “o
segredo da acumulação primitiva” nada guarda de “idílico”. Ao contrário,
caracteriza-se “pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo
assassinato, em suma, pela violência”. Em O Capital, o modo como deu-se a
empresa colonial é bastante claro:
“As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio,
a escravização das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das
minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação
da África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam
os albores da era da produção capitalista. Esses processos idílicos são fatores
fundamentais da acumulação primitiva. Logo segue a guerra comercial entre as
nações europeias, tendo o mundo por palco. Inicia-se com a revolução dos Países
Baixos contra a Espanha, assume enormes dimensões com a guerra antijacobina da
Inglaterra, prossegue com a guerra do ópio contra a China, etc”. (MARX, 1989,
p. 868).
Em “As veias abertas da América
Latina”, Galeano (1978) lembra ainda que “o Papa Alexandre VI, que era
espanhol, converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão
do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a Terra”. Bulas papais, no
século XV, já haviam feito Portugal senhor de territórios não cristianizados
conquistados na África, consignando a exploração e a escravidão perpétua aos
pagãos. Por fim, o Tratado de Tordesilhas se encarrega de dividir o Novo Mundo
entre portugueses e espanhóis, iniciando a pilhagem e a exploração sistemática
dos recursos do continente e o extermínio dos seus povos originários.
De acordo com Marx, esses novos
capitalistas mercantis depuseram “os mestres das corporações e os senhores
feudais” que controlavam a manufatura produtora de bens e riquezas na Europa.
Isto é, a ascensão da burguesia mercantil e manufatureira representa o triunfo
“contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, contra as corporações e
os embaraços que elas criavam ao livre desenvolvimento da produção e a à livre
exploração do homem pelo homem” (MARX, 1989, p. 830). Assim, a acumulação primitiva
consiste no “processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de
produção”.
No
contexto latino-americano, embora caracterizada pela exploração predatória, a
pilhagem, a escravização e a violência, a obra da colonização deu-se de forma
distinta pelo continente, conforme o estágio de desenvolvimento das forças
produtivas e as características culturais das metrópoles correspondentes. É
indiscutível, porém, conforme Siqueira da Silva (2019) que a “América Latina
sempre cumpriu um papel estratégico na gênese, na consolidação e no
aprofundamento da sociedade do capital”. Assim, Prado Júnior (1962), explica o
caráter da colonização brasileira destacando que para um país de comerciantes e
população reduzida como Portugal, não restava outra alternativa à Coroa senão
partilhar o ônus da exploração com a burguesia local, repartindo o território
em Capitanias Hereditárias - processo adotado antes nos Açores e na Madeira - e
fornecendo concessões para a exploração do Pau-Brasil.
De fato, na história do ocidente a consolidação do Estado
português constituiu-se em um processo que passou à margem das grandes
transformações que abalaram a sociedade europeia feudal – Renascimento, Reforma
Protestante e as revoluções científicas que indicaram a racionalização das
relações sociais. Freyre (1963), Holanda (1963), Faoro (1989), Prado Júnior
(1962) e Fernandes (1981), dentre outros, destacaram a ordem senhorial como o
traço típico da formação social brasileira derivada da colonização portuguesa.
O primeiro enfatizou a tradição patriarcal da família lusitana.
Deste modo, conforme Freyre (1963),
no Brasil, a empresa da colonização se deve a "corajosa iniciativa
particular" do colonizador português, que “concorrendo às sesmarias,
dispôs-se a vir povoar e defender militarmente, como era exigência real”.
Desenvolveu-se aqui uma sociedade “defendida menos pela ação oficial do que
pelo braço e pela espada do particular.” Assentada na família rural patriarcal
constituir-se-ia em uma “força social que se desdobra em política.” Argumenta
que do século XVI ao XVIII a colonização portuguesa no Brasil se caracteriza pelo
domínio quase que exclusivo da família rural organizada em torno da monocultura
do Engenho – parâmetro para a produção econômica e organização social. Para
ele, a obra da colonização brasileira deveu-se a família e não ao indivíduo e,
menos ainda, ao Estado português ou a alguma companhia burguesa de comércio,
como se fosse possível a produção da colônia de caráter agro-extrativista e
exportadora, qualquer autonomia em relação às grandes empresas capitalistas e
ao controle do mercado pela Europa.
O papel central exercido pelas
relações familiares na formação social brasileira seria também para Holanda
(1963) o que distinguiria a colonização portuguesa das demais na América.
Assim, destaca que a sociedade portuguesa, “estreitamente vinculada à ideia de
escravidão em que mesmo os filhos são apenas os membros livres desse organismo
inteiramente subordinado ao patriarca”, caracteriza-se, por um princípio de
autoridade originário da esfera doméstica que vai constituir-se no “suporte
mais estável da sociedade colonial”. Aí estariam as origens da indiferenciação
entre público e privado, quando o ambiente doméstico oferece o parâmetro para
as relações sociais e acompanha o indivíduo mesmo quando este já se situa fora
dele.
Faoro (1989), por sua vez, ressalta
que a Península Ibérica caracteriza-se por constituir a sua sociedade ”sob os
signos da guerra e da conquista”. O período turbulento de consolidação do
Estado português observa o autor, privilegiou o desenvolvimento de uma
“concepção ibérica da natureza humana”, uma “cultura da personalidade” que se
definia pelo valor dado à autonomia do homem e a ausência de qualquer tipo de
dependência. Conforme salienta Faoro (1989), privilegia, sobretudo, a
inexorável centralização do poder na ordem do absolutismo lusitano, de modo que
“tudo pertencia ao rei: senhor da terra, da guerra, do comércio.”
Prado Júnior (1962), por sua vez,
aponta que o aspecto “mais profundo da colonização reside na forma pela qual se
distribuiu a terra”. Deste modo, nesse processo em que “a grande exploração
absorve a terra, o senhor rural monopoliza a riqueza e com ela seus atributos
naturais: o prestígio, o domínio.” Conforme “a superfície do solo e seus
recursos naturais” eram as únicas riquezas dessas terras, destaca:
“Aqui, só uma riqueza: os recursos naturais; daí uma só
forma de exploração: a agricultura ou pecuária, subordinadas ambas a posse
fundiária. Assim um povo de comerciantes que fazia um século se afastara do
cultivo do solo para se dedicar de preferência à especulação mercantil, era
novamente arrastado para o amanho da terra” (PRADO JÚNIOR, 1962, p. 14).
Temos aí a origem da concentração
dos poderes econômicos, políticos e do latifúndio. De acordo com os referidos
autores, o centro de toda organização social na colônia seria a família rural
patriarcal, assentada nas grandes propriedades e na monocultura escravocrata,
estabelecida na ordem do Estado patrimonial português, submetida à força pela
ordem senhorial - “na propriedade quem domina incontestavelmente é o senhor”.
Conforme Prado Júnior (1962), a ordem social na colônia resulta da
“simplicidade da infraestrutura econômica - a terra, única força produtiva,
absorvida pela grande exploração agrícola - deriva a da estrutura social: a
reduzida classe de proprietários, e a grande massa que trabalha e produz,
explorada e oprimida”.
É importante destacar algumas
observações sobre os respectivos autores do pensamento político e social
brasileiro e as suas obras. Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda escreveram na década de 30, momento de transformações políticas,
econômicas e sociais no país, resultado das agitações e lutas que se seguiram
no pós-Grande Guerra e durante os anos 20. Nesse período, podemos destacar, do
ponto de vista cultural, o movimento Modernista, do político o
anarcossindicalismo, o Tenentismo e a fundação do PCB e, do ponto de vista
econômico, a crescente urbanização e industrialização com a ascensão da classe
média urbana, a crise decorrente da Grande Guerra, o desgaste do pacto
oligárquico nacional e a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929. O período
compreendido entre os anos 20 e 30 é de modernização do Estado, da sociedade,
da economia e da política no país.
Do ponto de vista objetivo, Caio
Prado Júnior foi quem introduziu o método de investigação marxista no país com
“Evolução política do Brasil”, publicado em 1933. Nessa obra, evidencia-se
tanto a primazia do “modo de produção”, quanto a “luta de classes” na abordagem
do processo histórico brasileiro. Embora o livro “Agrarismo e Industrialismo”
de Octávio Brandão tenha sido publicado em 1926, a obra de Caio Prado Júnior é
a que segue o método materialista dialético à rigor, não apenas utilizando-se
de categorias do marxismo-leninismo na interpretação da realidade. Ambos, a
época do lançamento dos seus livros, já eram quadros do PCB.
Sérgio Buarque de Holanda, por sua
vez, é o introdutor no país do método interpretativo de Weber. Em “Raízes do
Brasil” de 1936, ensaio sobre a formação social brasileira, ele formula por
meio dos “tipos ideais” o conceito de “homem cordial” e analisa os conceitos de
“patrimonialismo” e “burocracia”, categorias emblemáticas da sociologia de
Weber. Freyre em Casa Grande e Senzala de 1933 aponta o patriarcalismo, o
espírito aventureiro e a capacidade de adaptar-se - ao clima, a natureza, a
terra e aos nativos - do português, assim, destaca o caráter funcional da
colonização, na tradição da sociologia “funcionalista”. Eis os fundadores do
pensamento político e social brasileiro, aplicando os distintos métodos das Ciências
Sociais na abordagem do nosso processo histórico.
Após duas décadas, quando Faoro
publica “Os donos do poder: formação do patronato brasileiro” já estamos à
época do Plano de Metas e da CEPAL, as portas dos anos 60 e em meio a Guerra
Fria. Aqui ele aprofunda, na tradição da abordagem weberiana o conceito de
“patrimonialismo” e as suas origens ibéricas. Em Faoro não existe um projeto
nacional para o povo, apenas manutenção do poder estamental-burocrático,
responsável pelo atraso e a persistência de instituições arcaicas.
Florestan, como Caio Prado Júnior, constrói a
sua análise na perspectiva do materialismo dialético, dialogando com a “Teoria
da Dependência”, já em 1975. Assim, para ele, antes de mais nada não é possível
“associar, legitimamente, o senhor de engenho ao “burguês” (nem a aristocracia
agrária à “burguesia”)”. Dito isso, a aristocracia agrária e escravocrata
brasileira surge “fora e acima dos marcos históricos-culturais do mundo social
europeu” que deu origem a burguesia, classe revolucionária que logrou suplantar
a ordem feudal na disputa pela hegemonia com a nobreza. No interior do processo
de “mercantilização da produção agrária”, o senhor de engenho ocupava “posição
marginal” como “agente econômico especializado”, cujo objetivo era apenas o de
“gerar riquezas para a apropriação colonial”. Deste modo:
“Uma das consequências dessa
condição consistia em que ele próprio, malgrado seus privilégios sociais,
entrava no circuito da apropriação colonial como parte dependente e sujeita a
modalidades inexoráveis de expropriação controladas fiscalmente pela Coroa ou
economicamente pelos grupos financeiros europeus, que dominavam o mercado
internacional”. (FERNANDES, 2006, p. 33).
Para Florestan, “nada justificaria
assimilar o senhor de engenho ao burguês, e é um contra-senso pretender que a
história da burguesia emerge com a colonização”. Trata-se de buscar nos
elementos estruturais e operacionais as condições fundamentais para o
surgimento e o “desenvolvimento da “burguesia”, à luz do modo de produção
típico na ordem do capitalismo dependente e periférico e do “padrão de
civilização que orientou e continua a orientar a “vocação histórica” do povo
brasileiro”.
Como Prado Júnior, Fernandes (1981)
foi um intelectual militante, comprometido e engajado nas lutas da classe
trabalhadora. A sua “sociologia militante”, se posicionava e entendia-se “fora
e acima das universidades e instituições de pesquisas”, consciente de que
“aprendemos e amadurecemos a cada convulsão que afeta o destino de nossos
povos”. Florestan considera os países latino-americanos no âmbito do “dilema do
capitalismo dependente”, produtos da “expansão da civilização ocidental”, isto
é, um tipo moderno de colonialismo organizado e sistemático”. Assim,
estabelece-se a adesão voluntária e “dependente ao espaço econômico, cultural e
político das sucessivas nações capitalistas hegemônicas”.
Considerando o incipiente estágio de
desenvolvimento das forças produtivas de Portugal e Espanha no século XVI,
Fernandes (1981) destaca que não eram suficientemente robustas para prover as
“atividades mercantis” decorrentes da “descoberta, exploração e o crescimento
das colônias”. Por essa razão, associam-se aos capitalistas dos Países Baixos e
Veneza em busca da tecnologia, do capital, equipamentos e do mercado
internacional, desempenhando meramente o papel de intermediários ou sócios
subalternos no negócio.
As transformações políticas,
econômicas e sociais ocorridas na Europa desde o final do século XVIII e início
do XIX, sobretudo, em decorrência da Revolução Industrial, corroem as bases da
dominação pelo controle econômico das potências centrais e intermediárias nas
colônias. Fernandes (1981) demonstra
como esse processo gradualmente determinou “mudanças nos padrões existentes de
dominação externa”, alcançando todas as “esferas da economia, da sociedade e da
cultura”. Deste modo, é categórico:
“Assim a dominação externa tornou-se imperialista, e o
capitalismo dependente surgiu como uma realidade histórica na América Latina”.
(FERNANDES, 1981, p. 16).
Imperialismo, dependência e Serviço Social na América Latina
A reorganização da economia mundial,
a partir da segunda metade do século XIX, promove o incremento e ampliação da
subordinação latino-americana às nações “desenvolvidas”, conforme sinalizado
por Marx, Engels e Lênin. De acordo com a expansão da indústria, o avanço da
tecnologia e a incorporação de mercados através da força, tanto o capital
europeu - sobretudo o inglês -, quanto o norte-americano crescem de maneira
espantosa nesse período. Assim, Siqueira
da Silva (2019) destaca:
“A crise capitalista desse momento (1873-1896) – considerada
a primeira Grande Depressão – e o intenso movimento operário da segunda metade
desse século que acirrou mundialmente a luta de classes – esse último,
presenciado e estudado em detalhes por Marx e Engels no conjunto de suas obras
–, anunciaram uma forte reestruturação capitalista visando gerenciar a primeira
grande crise estrutural do capital e retomar níveis ótimos de acumulação. Era o
alvorecer da era monopolista do capital, como “fase superior do capitalismo”
(LENIN, 2008), predominantemente centrada em três fortes pilares: a) a fusão de
grandes grupos econômicos até então concorrentes, formando monopólios exercidos
por meio de cartéis e trustes; b) o adensamento contínuo da financeirização e
de seus desdobramentos, processo este possível por meio da fusão entre o velho
capital bancário e o capital industrial; c) a captura orgânica dos estados
nacionais como elementos intrínsecos à acumulação capitalista, momento em que
os fundos públicos são fortemente utilizados para incrementar a acumulação”.
(SIQUEIRA DA SILVA, 2019, p. 03).
Enquanto os capitalistas europeus
avançam sobre a África e a Ásia[3], os
norte-americanos cravam as suas garras sobre a América Latina. O interesse
norte-americano pelo controle e a hegemonia no continente remonta a época da
“Doutrina Monroe”(1823), estratégia política, econômica e militar que defendia
a “América para os americanos”, assentada em três pilares: não aceitação da
criação de novas colônias no continente pela Europa, não interferência americana
em conflitos europeus e rejeição a interferência europeia em conflitos internos
no continente americano. A “Doutrina Monroe” se insere no contexto da longa
guerra pela independência dos Estados Unidos contra a Inglaterra e as guerras
de independência da América Espanhola entre 1809 e meados do século - do México
ao Uruguai. É nesse cenário que os americanos se impõe no continente, avançando
sobre territórios mexicanos na década de 40 do século XIX e em Cuba, Porto
Rico, Panamá e até as Filipinas na Guerra Hispano-Americana no final da década
de 90.
Brunschwig (1974), em “A partilha da
África Negra” explica como o continente africano foi dividido pelas principais
potências europeias na Conferência de Berlim em 1885. Assim, a Ata Geral
redigida em Berlim em 26 de fevereiro de 1885, cujos signatários são a
Alemanha, França, Império Austro-Húngaro, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados
Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia, Noruega
e o Império Otomano buscava regulamentar a liberdade de comércio no continente,
a navegação e novas ocupações na costa ocidental africana, proibindo a
escravização e o seu comércio e estabelecendo a proteção de colonos e seus
bens, a garantia de “aquisição e transmissão de suas propriedades mobiliárias e
imobiliárias” e a não concessão de monopólios ou privilégios “de nenhuma
espécie em matéria comercial” pelos signatários.
Em “Imperialismo fase superior do
Capitalismo”, Lênin (1982) explica que além da “partilha territorial do globo
entre as grandes potências capitalistas”, a
“fusão do capital bancário e do industrial” formando uma “oligarquia
financeira”, é imperativo a “exportação de capitais” e a “formação de uniões
internacionais monopolistas” - trustes e cartéis. Assim, define esse estágio de
desenvolvimento da produção como a “fase monopolista do capitalismo”,
considerando que o “monopólio constitui a passagem do capitalismo a um regime
superior”.
“O que caracteriza particularmente o capitalismo atual é o
domínio dos grupos monopolistas constituídos por grandes empresários. Estes
monopólios tornam-se sólidos sobretudo quando reúnem apenas em suas mãos todas
as fontes de matérias-primas e nós vimos com que ardor os grupos monopolistas
internacionais dirigem os seus esforços no sentido de arrancarem ao adversário
toda a possibilidade de concorrência, de se apoderarem, por exemplo, das
jazidas de ferro ou de petróleo, etc. Somente a posse de colônias dá ao
monopólio completas garantias de sucesso face a todas as eventualidades da luta
contra os seus rivais, mesmo na hipótese de estes últimos ousarem defender-se
com uma lei que estabeleça o monopólio de Estado. Quanto mais o capitalismo se
desenvolver, mais se faz sentir a falta de matérias-primas, mais dura se torna
a concorrência e a procura de fontes de matérias-primas no mundo inteiro e mais
brutal é a luta pela posse de colônias”. (LÊNIN, 1982, p. 81/82).
O surgimento do Serviço Social, por
sua vez, coincide com o apogeu do
capital imperialista e a consolidação da socialdemocracia para subsidiar a
administração da “questão social” na ordem burguesa. Considerando que a
produção é social e coletiva, e a acumulação e concentração privadas, tal
contradição encerra a gênese da questão social[4]. Por sua vez, a sociedade é
uma totalidade, ou seja, trata-se de um ente concreto, dinâmico, histórico,
complexo, heterogêneo, contraditório - a ideia de “todo” e as “partes”, se
contrapõe à totalidade, que consiste numa unidade contraditória.
As ciências sociais, herdeira do
Iluminismo, surge no bojo da tradição conservadora, conforme a primazia do
pensamento Positivista/Funcionalista durante o século XIX. A ascendência das
ciências da natureza na origem das ciências sociais, favorece a “naturalização”
da sociedade, enquanto que o positivismo, conforme doutrina filosófica, busca a
ordem, o progresso e a “moralização” do social. Após a “primavera dos povos” -
Revoltas de 1848 -, a questão social se desvia do pensamento crítico -
socialismo - para a tradição conservadora, na medida em que se encerra o ciclo
ascendente revolucionário proletário e a hegemonia do debate passa para os
conservadores, naturalizando-a e a moralizando, a despeito das suas
determinações históricas (IAMAMOTO, 1998, NETTO, 1989, 1996, 2001).
No Brasil, é com esse caráter
conservador que têm origem o Serviço Social no bojo do capitalismo tardio e a
industrialização promovida pela ditadura Vargas. A crise no Serviço Social
tradicional, por sua vez, no contexto latino-americano, se inicia ainda na
década de 60, sob pressão dos movimentos revolucionários, das revoltas
estudantis, da luta pelos direitos civis e a segunda onda feminista,
estimulando à sua aproximação do pensamento crítico. Conforme a revolução
Cubana em 59, e as lutas anticoloniais na África e na Ásia, a conjuntura dos
anos 60 irá favorecer o acirramento político-ideológico e a expansão de
movimentos de luta e resistência na América Latina. Deste modo, evidencia-se o
caráter pragmático e polivalente do Serviço Social, marcado pelo sincretismo e
a prática indiferenciada no seu processo de desenvolvimento, condicionado por
determinações antes de ordem prático-política, que teórico-acadêmica (IAMAMOTO,
1998, NETTO, 1996).
Por sua vez, esse processo do
refazer profissional, e repensar as bases teóricas do Serviço Social alinhado
com as transformações sociais e as demandas da classe trabalhadora,
possibilitou uma interlocução com o marxismo, tanto no âmbito das condições de
trabalho do profissional quanto em relação a dinâmica do capitalismo, da
sociedade burguesa e a atualidade do processo revolucionário como
possibilidade. Do ponto de vista objetivo, o marxismo subsidia a produção
teórica, a intervenção socioprofissional e a reflexão sobre o significado
sócio- histórico da profissão (NETTO, 1996).
A renovação do Serviço Social,
coincide com a crise da ditadura no contexto de reorganização do capital
global. Assim, foi um processo de questionamento global da profissão do ponto
de vista teórico, ideológico, prático e histórico no contexto das
transformações sociais e do capitalismo. Deste modo, o encontro do serviço
social com o marxismo deu-se através da luta política mediado pela prática
político-partidária. Essa relação, por sua vez, impôs a exigência de um
aprofundamento da consciência teórica capaz de explicar as determinações desse processo
e as possibilidades de ação. Posto que o Serviço Social oscilasse entre a
tradição conservadora brasileira - elitista, autoritária, messiânica e
idealista - de um lado, e o tecnicismo pragmático que o Estado e o capital
demandam de outro (NETTO, 1989).
Do ponto de vista da ruptura que se
contrapõe à matriz conservadora latente na prática profissional do assistente
social, a base teórico-metodológica do pensamento marxista foi apropriada de
forma heterogênea e indeterminada pela profissão, não sem resistências e
atritos. Assim, constata-se que a complexidade da teoria social construída por
Marx, impõe um aprofundamento teórico-metodológico que subsidie tanto a
formação e produção acadêmica, quanto a
ação político-profissional, dialogando com a economia, a filosofia, a
sociologia, a ciência política, a história (NETTO, 1989).
O pensamento de Marx funda uma teoria social: toda a sua
pesquisa está centrada na análise radicalmente crítica da emergência do
desenvolvimento, da consolidação e dos vetores de crise da sociedade burguesa e
do ordenamento capitalista. [...] o traço peculiar e decisivo refere-se ao seu
cariz histórico-ontológico. (Netto, 1989, p. 92)
É relevante destacar que nesse
processo a luta política, conforme a conjuntura latino-americana, atravessa
todo o debate sobre a profissão e a sociedade, no bojo das transformações
decorrentes da onda redemocratizante no continente, a crise do bloco soviético
e o avanço do neoliberalismo. A reflexão crítica sobre o processo social exige
esmiuçar a relação entre as classes, e entre elas e o Estado na perspectiva da
“totalidade” - histórica, política, econômica, teórica.
A expansão do capital monopolista
desde o fim da II Guerra e o processo de industrialização acelerado, sob
influência norte-americana no Brasil desde Vargas, alcança o seu apogeu com
Juscelino Kubistchek e o Plano de Metas no bojo da “Aliança para o Progresso” -
plano político norte-americano de “apoio” técnico, econômico, social para a
América Latina, com o objetivo de incentivar o “desenvolvimento” e a
“segurança” no continente mantendo os seus países sob a tutela de Washington,
combatendo a influência comunista após a bem sucedida Revolução Cubana em 1959.
O processo de industrialização
brasileiro - iniciado por Vargas, ainda durante o “Estado Novo” -, combinado
com a onda redemocratizante do pós-guerra - II Guerra - modifica não apenas o
Estado, complexificando-o e promovendo o incremento da burocracia, mas, incide
de maneira contundente na sociedade ampliando o proletariado urbano, as camadas
médias ligadas ao setor público, o fluxo migratório e a urbanização rápida e
desordenada. Essas mudanças provocam alterações na correlação de forças entre
as classes sociais tensionando a luta de classes em favor dos trabalhadores,
demandando a ampliação de políticas sociais, serviços públicos, direitos
sociais e democracia.
A abertura política decorrente do
final da II Guerra favorece o aumento em volume e organização, bem como a
capacidade de mobilização política dos trabalhadores. Há nesse período o
crescimento do número de sindicatos e sindicalizados, greves e manifestações
dos trabalhadores - de um lado o “Trabalhismo” e de outro o Comunismo se
constituem nos grandes vetores das reivindicações da classe trabalhadora pós 45
e até 64. Apesar de ter seu registro cassado pelo TSE em 1947 nos primórdios da
Guerra Fria e no bojo do anticomunismo caboclo, o PCB foi uma força política
considerável junto ao proletariado urbano desde a sua fundação em 1922 até fins
dos anos 50, período de decadência do stalinismo e crise dos partidos
comunistas mundo afora. Em 1945, o PCB possuía mais de 100 mil filiados e nas
eleições daquele ano era a quarta força política mais importante do país dentre
13 legendas, elegendo um senador (Luís Carlos Prestes) e 15 deputados federais.
Em janeiro de 1947, quatro meses antes de ter seu registro cassado, com grande
influência sobre o movimento operário urbano, conseguiu eleger 11 deputados
estaduais em São Paulo.
A industrialização e urbanização
aceleradas e concentradas, a ampliação das organizações dos trabalhadores, o
incremento do Estado, condicionam o aprofundamento das bases teóricas do
pensamento político, econômico e social brasileiro e latino-americano. Nesse
contexto, surge a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) em 1948 e o
ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) em 1955. De caráter
transnacional, a CEPAL reunia economistas de diversos países da América Latina
com o objetivo de refletir sobre a realidade local, buscando alternativas de
desenvolvimento conforme as suas peculiaridades, através de cooperação e
parcerias técnicas.
A CEPAL, com Raúl Prebisch e Celso
Furtado, contribui para a afirmação de um pensamento político, social e
econômico latino-americano, consolidando a tese do desenvolvimentismo,
enfatizando a necessidade da industrialização como alternativa à política de
importações que caracteriza as relações essencialmente assimétricas entre
“centro” - países industriais e desenvolvidos - e “periferia” - países
não-industrializados e subdesenvolvidos. O Plano de Metas durante o governo
Juscelino Kubistchek, conduzido por Celso Furtado, foi orientado pelo paradigma
cepalino da substituição de importações promovendo a industrialização acelerada
no país, conforme a receita do intervencionismo estatal keynesiano em parceria
com o capital.
O ISEB, por sua vez, no esteio da
CEPAL, propunha impulsionar um pensamento brasileiro nas ciências sociais capaz
de contribuir para o desenvolvimento do país. Vinculado ao Ministério da
Educação e Cultura, o Instituto possuía um forte traço nacionalista, reunindo
intelectuais como Hélio Jaguaribe e Nelson Werneck Sodré - o historiador e
militar comunista. Como instituição de estudos pós-universitários o ISEB
cumpria a função de alicerçar as bases ideológicas do
nacional-desenvolvimentismo, produzindo conhecimentos sobre o país que
subsidiariam a intervenção estatal. O trabalho desenvolvido pela CEPAL e o ISEB
culminariam na “Teoria da Dependência”, como arcabouço teórico-crítico para
repensar e superar os modelos desenvolvimentistas - nacional-desenvolvimentista
e o autoritário-desenvolvimentista. Além disso, retomam o pensamento de Lênin e
Rosa Luxemburgo nas reflexões sobre o Imperialismo, e o de Trotski sobre
“desenvolvimento desigual e combinado”.
Atualidade do imperialismo e do neoliberalismo: tendências
teóricas e possibilidades de resistência e contra-ofensiva.
Na alvorada do século XXI, até o
final da primeira década a América Latina passou por uma onda progressista nos
seus diversos países sem precedentes desde a redemocratização durante os anos
80 do século passado. Após a estagnação econômica dos anos 80, a década de 90
se caracteriza pela Globalização e o Neoliberalismo no continente, encampado
pelo Consenso de Washington. Após esse período de abertura política e
econômica, hegemonia norte-americana e primazia do mercado, forças
progressistas - democráticas e de centro-esquerda - e a classe trabalhadora
alcançam o poder pelas vias eleitorais, depois de duas décadas de acúmulo e
maturação político-partidária.
Podemos dizer que esse processo se
inicia ainda em meados dos anos 90 com o zapatismo em Chiapas no México -
Exército Zapatista de Libertação Nacional -, chamando a atenção para o
movimento campesino e indígena do sul do país na resistência à ALCA - zona de
livre comércio estabelecida pelos Estados Unidos no hemisfério norte. No final
daquela década Hugo Chávez alcança a presidência na Venezuela, inaugurando o
Bolivarianismo, espécie de socialismo sulamericano do século XXI - de caráter
populista e nacional-desenvolvimentista. Em 2002 Lula é eleito presidente no
Brasil, seguido por Néstor Kirchner na Argentina, Rafael Correa no Equador,
Fernando Lugo no Paraguai, Evo Morales na Bolívia, Michelle Bachelet no Chile e
Pepe Mujica no Uruguai. Esse processo, de um modo geral, ampliou a democracia
na América Latina, promoveu segmentos populares historicamente apartados do
poder a protagonistas na agenda política e, sobretudo, estabeleceu políticas
econômicas e sociais que alavancaram o PIB e o IDH desses países. Foi um
período favorável para o Serviço Social, na medida em que a profissão expandiu
a sua atuação profissional, ampliando a sua inserção na sociedade como
interlocutora da classe trabalhadora no esteio do avanço das conquistas
sociais. Esse movimento da práxis profissional aliada a atuação política
demandou, por sua vez, o aprofundamento teórico-metodológico em bases críticas,
de modo a alicerçar a formação dos profissionais e ampliar o debate sobre a
realidade latino-americana no contexto do capitalismo dependente e periférico
na ordem global.
A contra-ofensiva neoliberal e
autoritária dá-se ainda no início do século XXI, em 2002 na tentativa de golpe
contra Hugo Chávez na Venezuela e no golpe contra Aristide no Haiti sob a
batuta norte-americana, em 2004. A crise econômica nos Estados Unidos em 2008,
comparável a quebra da bolsa de valores de 1929, espalha a instabilidade e o
refluxo de investimentos na região, precipitando a ofensiva da direita
neoliberal e autoritária no continente. Seguem-se os golpes contra Zelaya em
Honduras em 2009 e Fernando Lugo em 2012 no Paraguai, até o famigerado processo
de impeachment contra o PT em 2016 e Evo Morales em 2019. Com exceção de Mujica
no Uruguai e Bachelet no Chile, todos os outros presidentes e ex-presidentes
foram perseguidos politicamente pela burguesia associada ao projeto neoliberal
autoritário, durante e após os seus mandatos, com o objetivo de desestabilizar
o país e acabar com a carreira política dos mandatários.
Segundo Fernandes (1981), o “moderno
imperialismo”, através de grandes “empresas corporativas”, por sua vez,
ampliado no contexto da Globalização, subjuga os esforços para o “crescimento
econômico autônomo e a integração nacional da economia” na América Latina,
colocando-os à serviço dos interesses privados estrangeiros. Enquanto nos
países capitalistas desenvolvidos a hegemonia norte-americana pode ser
contrabalançada pelo Estado, a indústria e a burguesia nacional, ele destaca
que em função da carência de recursos materiais, tecnológicos e humanos nos
países periféricos dá-se o seguinte:
“Em consequência, o processo de modernização, iniciado sob a
influência e o controle dos Estados Unidos, aparece como uma rendição total e
incondicional, propagando-se por todos os níveis da economia, da segurança e da
política nacionais, da educação e da cultura, da comunicação em massa e da
opinião pública, e das aspirações ideais com relação ao futuro e ao estilo de
vida desejável”. (FERNANDES, 1981, p. 23).
Em suma, é de acordo com os
interesses político-econômicos norte-americanos que as economias e sociedades
latinas vem sendo reorganizadas, a despeito das características,
potencialidades e aspirações nacionais. Conforme a atual ofensiva do projeto
neoliberal no continente, é importante destacar duas constatações: a primeira é
que o neoliberalismo na América Latina surgiu
há três décadas - com exceção do Chile, nos anos 70 sob os fuzis e coturnos de
Pinochet -, no final dos anos 80 e início dos 90, com Collor e FHC no Brasil, Salinas no
México, Carlos Menem na Argentina, Andrés Rodríguez e Wasmosy no Paraguai,
dentre outros. A segunda, é que a atual onda neoliberal que assola o continente
trata-se de uma contra-ofensiva aos governos progressistas e de centro-esquerda
que buscaram alternativas mais ou menos palatáveis à agenda neoliberal, entre o
final dos anos 90 e início do século XXI como Lula no Brasil, Kirchner na
Argentina, Chavéz na Venezuela, Rafael Correa no Equador, Evo Morales na
Bolívia, dentre outros. Dito isso,
trata-se de um projeto que visa não apenas impor a agenda de “ajustes”
neoliberal, porém antes proceder o desmonte das conquistas sociais em termos de
direitos e políticas alcançadas pelas classes populares e os trabalhadores
desses países.
Por essas razões, é importante
destacar a defesa da teoria crítica como tendência teórica-metodológica
privilegiada no contexto da atualidade do pensamento latino-americano, pois,
conforme Siqueira da Silva (2019), o “debate marxista no serviço social não é
apenas necessário: é essencial”. Na medida em que ele “não apenas oferece as
melhores condições para uma apropriação crítica do objetivamente posto, nas
condições efetivamente dadas, sem idealismos e dogmatismos”. Mais que isso,
porque se posiciona “como tradição teórico-prática imprescindível, embora não
única”, impondo o fundamental “debate com tradições teóricas diversas, suas
teses centrais, sua crítica, portanto sem espaço para qualquer espécie de
relativismo e de ecletismo”. Finalizando, cumpre ampliarmos o debate com
interlocutores latino-americanos, promovendo o intercâmbio de teses,
alternativas e estratégias de resistência e enfrentamento dessa onda ultra
neoliberal, autoritária e obscurantista que avança sobre o continente.
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[1] Artigo escrito para a disciplina Serviço Social e
América Latina do Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de
São Paulo.
[2] Bacharel em Sociologia e Política
pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, 2002.
Mestrando em Serviço Social no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, 2018.
[3] O
século XIX é a “era de ouro” do Império Britânico. Após a queda de Napoleão e o
fim das guerras napoleônicas, a Inglaterra torna-se a grande potência mundial.
A Marinha Real Britânica, desde a vitória sobre a Armada Espanhola no século
XVI domina e controla os oceanos. Assim, no século XIX o Império Britânico
conquista mercados através da força militar, expandindo-se até a Rússia com a
Guerra da Criméia (1853), a China com a Guerra do Ópio (1856), às guerras de
ocupação na Índia até a sua anexação em 1876, a conquista do Egito em 1882 e a
Guerra dos Bôeres na África do Sul em 1899.
[4] De acordo com Marx: “A reprodução da força de trabalho, que
incessantemente precisa incorporar-se ao capital como meio de valorização, não
podendo livrar-se dele e cuja subordinação ao capital só é velada pela mudança
dos capitalistas individuais a que se vende, constitui de fato um momento da
própria reprodução do capital. Acumulação do capital é, portanto, multiplicação
do proletariado” (O Capital, capítulo 23).
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