Conheci
Heleieth Saffioti em 2002, como ouvinte na pós em Sociologia na PUC/SP -
disciplina “Violência e Gênero.” Fui apresentado a ela
pelo professor Alessandro Soares - PROMUSPP/EACH - USP. Nessa época ele era
mestrando em Psicologia Social - Núcleo de Psicologia Política - na
PUC e professor de Filosofia na FESPSP - eu era recém formado e nos conhecemos lá. A professora Saffioti foi uma mulher
muito elegante, culta e altiva.
Lembro-me com muita satisfação e orgulho, por haver presenciado as suas aulas, participando até de alguns debates, experimentando a sua
critica contumaz e a verve irônica. Era também bastante
generosa e sempre dialogava com todos/as, diferente de uns deslumbrados e
extravagantes da casa. Uma vez me deu carona até a FESPSP, dirigindo o seu
Santana 2001. Notável militante feminista e intelectual, reconhecida
mundialmente, sua obra e luta dispensam adjetivos. Rigorosa e agradável,
crítica e bem humorada, sutil e provocativa. Me lembro
dela agora por ocasião das diversas situações que envolvem cada vez mais o
judiciário intervindo e decidindo sobre variadas causas, que tampouco são da sua
competência exclusiva – da internação compulsória de dependentes químicos a
união homoafetiva. Compartilhávamos a crítica e com ela amadureci
infinitamente a minha!
Quando
falamos de violência, em especial, violência de gênero, aprendi
com ela que este “é um conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres,
crianças e adolescentes de ambos os sexos”. Para ela, o processo de
classificação de gênero, assentado na construção simbólica (escrita e discurso)
está dado entre os humanos. Assim, o poder do patriarca encontra-se em todas as
instituições, grupos ou ideias. O conceito feminino naturaliza uma condição
criada pela sociedade. Isto revela um "conceito rígido de gênero". A realidade
dos homens e das mulheres não pode ser redutível as categorias feminino e
masculino.
De
fato, “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos”, deste modo, “é uma forma primeira de
significar as relações de poder.” Nesse sentido, sustenta que a categoria histórica gênero não constitui uma “camisa de força”, não
se reduzindo a um destino inexorável. A discussão de gênero e poder
consiste em pensar as desigualdades que se manifestam em vários níveis:
político, cultural, econômico. Conforme Thompson, “as desigualdades passam
também pelo plano simbólico, com as formas simbólicas se entrecruzando com as
relações de poder.” Nota-se o papel do simbólico na construção da dominação e
desigualdade nos vários níveis da sociedade que ela perpassa. As “formas simbólicas
não são meramente representações que servem para articular ou obscurecer
relações sociais ou interesses que são constituídos fundamental e
essencialmente em um nível pré- simbólico: ao contrário, as formas simbólicas
estão, contínua e criativamente, implicadas na constituição das relações
sociais como tais” (...) e, “entre as assimetrias que são mais importantes e
mais duráveis nas sociedades modernas, estão àquelas baseadas nas divisões de
classe, gênero, etnia, estado/nação. Elas são alguns dos elementos que estruturam
as instituições sociais e os campos de interação.”
A
identidade de gênero se constrói pelo reconhecimento de modelos estabelecidos em
contextos socioculturais, por meio de
conceitos considerados universais - modelos éticos/morais que correspondem a
práticas e hábitos estáveis, resistentes à mudança (tradições, costumes).
Reservando, assim, ao masculino e ao feminino um espaço diferenciado e restrito em
que cada um (a) deve exercer um modelo convencional, um tipo ideal que não deve
afastar-se dele. Ela afirma que a “construção social do ser homem e do ser mulher”
é apenas um dos princípios normatizadores da sociedade, articulado a raça/etnia,
classe social, religião, entre outros que promovem a hierarquização das relações
sociais e a dominação que caracterizam as relações de poder. Ela considera
ainda a família, como o primeiro veículo dessa hierarquização, posto que seja
nela que se desenvolve o processo de socialização, onde meninos e meninas
iniciam a internalização dos códigos de conduta aceitos e incentivados
socialmente e as assimetrias decorrentes.
A
violência doméstica, por sua vez, traz em si representações culturais
socialmente construídas tais como a noção de proteção à infância; de castigo
como instrumento pedagógico; de hierarquia familiar e de dominação do mais
forte. A constante oscilação nas
famílias, a ressignificação dos papeis entre os seus membros, a
desestabilização das relações conjugais decorrentes desse processo produz
impactos significativos na subjetividade infantil influenciando,
principalmente, o potencial de reproduzir ou desenvolver em relações afetivas
futuras o mesmo padrão agressivo de relacionamento com que conviveu (aprendeu)
na infância. Sem compreender o processo histórico, as determinações materiais e as características
socioculturais que determinam as bases objetivas e subjetivas em que se assentam as diversas
e perversas formas de violência estabelecidas na nossa sociedade, o debate jurídico
e a criminalização limitar-se-ão as suas consequências, cumpre agir sobre as
causas.
Caro Mário: texto emocionante, instigante e poético, ao mesmo tempo. Nos faz refletir sobre as construções de certos conceitos que, muitas vezes, acabam cristalizados, engessados pelas artimanhas do Poderque tem múltiplas facetas. Concordo com vc (e creio que também a saudosa Profa. Saffioti) que devemos agir sobre as causas e vejo que a educação é um dos caminhos possíveis. Reforço: a perversidade é perversa, não é mesmo ?
ResponderExcluirCara professora Maria Luiza;
ResponderExcluirObrigado! Fico lisonjeado com tamanha generosidade e gentileza! O que apenas demonstra a sua sensibilidade, humildade e nobreza. Sem duvidas, a perversidade é pior ainda porque é muitas vezes sutil - penso eu. Por outro lado, de acordo com a professora Saffioti, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, entre outros grandes e saudosos intelectuais-militantes, conforme a realidade seja histórica, politica e cultural, na democracia a educação é o seu fundamento e, assim, imprescindível para o exercício da cidadania.