domingo, 10 de fevereiro de 2013

Lembranças da PUC-SP....


Conheci Heleieth Saffioti em 2002, como ouvinte na pós em Sociologia na PUC/SP - disciplina “Violência e Gênero.”  Fui apresentado a ela pelo professor Alessandro Soares - PROMUSPP/EACH - USP. Nessa época ele era mestrando em Psicologia Social - Núcleo de Psicologia Política - na PUC e professor de Filosofia na FESPSP - eu era recém formado e nos conhecemos lá. A professora Saffioti foi uma mulher muito elegante, culta e altiva. 

Lembro-me com muita satisfação e orgulho, por haver presenciado as suas aulas, participando até de alguns debates, experimentando a sua critica contumaz e a verve irônica. Era também bastante generosa e sempre dialogava com todos/as, diferente de uns deslumbrados e extravagantes da casa. Uma vez me deu carona até a FESPSP, dirigindo o seu Santana 2001. Notável militante feminista e intelectual, reconhecida mundialmente, sua obra e luta dispensam adjetivos. Rigorosa e agradável, crítica e bem humorada, sutil e provocativa. Me lembro dela agora por ocasião das diversas situações que envolvem cada vez mais o judiciário intervindo e decidindo sobre variadas causas, que tampouco são da sua competência exclusiva – da internação compulsória de dependentes químicos a união homoafetiva. Compartilhávamos a crítica e com ela amadureci infinitamente a minha!

Quando falamos de violência, em especial, violência de gênero, aprendi com ela que este “é um conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos”. Para ela, o processo de classificação de gênero, assentado na construção simbólica (escrita e discurso) está dado entre os humanos. Assim, o poder do patriarca encontra-se em todas as instituições, grupos ou ideias. O conceito feminino naturaliza uma condição criada pela sociedade. Isto revela um "conceito rígido de gênero". A realidade dos homens e das mulheres não pode ser redutível as categorias feminino e masculino. 

De fato, “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”, deste modo, “é uma forma primeira de significar as relações de poder. Nesse sentido, sustenta que a categoria histórica gênero não constitui uma “camisa de força”, não se reduzindo a um destino inexorável. A discussão de gênero e poder consiste em pensar as desigualdades que se manifestam em vários níveis: político, cultural, econômico. Conforme Thompson, “as desigualdades passam também pelo plano simbólico, com as formas simbólicas se entrecruzando com as relações de poder.” Nota-se o papel do simbólico na construção da dominação e desigualdade nos vários níveis da sociedade que ela perpassa. As “formas simbólicas não são meramente representações que servem para articular ou obscurecer relações sociais ou interesses que são constituídos fundamental e essencialmente em um nível pré- simbólico: ao contrário, as formas simbólicas estão, contínua e criativamente, implicadas na constituição das relações sociais como tais” (...) e, “entre as assimetrias que são mais importantes e mais duráveis nas sociedades modernas, estão àquelas baseadas nas divisões de classe, gênero, etnia, estado/nação. Elas são alguns dos elementos que estruturam as instituições sociais e os campos de interação.” 

A identidade de gênero se constrói pelo reconhecimento de modelos estabelecidos em  contextos socioculturais, por meio de conceitos considerados universais - modelos éticos/morais que correspondem a práticas e hábitos estáveis, resistentes à mudança (tradições, costumes). Reservando, assim, ao masculino e ao feminino um espaço diferenciado e restrito em que cada um (a) deve exercer um modelo convencional, um tipo ideal que não deve afastar-se dele. Ela afirma que a “construção social do ser homem e do ser mulher” é apenas um dos princípios normatizadores da sociedade, articulado a raça/etnia, classe social, religião, entre outros que promovem a hierarquização das relações sociais e a dominação que caracterizam as relações de poder. Ela considera ainda a família, como o primeiro veículo dessa hierarquização, posto que seja nela que se desenvolve o processo de socialização, onde meninos e meninas iniciam a internalização dos códigos de conduta aceitos e incentivados socialmente e as assimetrias decorrentes. 

A violência doméstica, por sua vez, traz em si representações culturais socialmente construídas tais como a noção de proteção à infância; de castigo como instrumento pedagógico; de hierarquia familiar e de dominação do mais forte. A constante oscilação nas famílias, a ressignificação dos papeis entre os seus membros, a desestabilização das relações conjugais decorrentes desse processo produz impactos significativos na subjetividade infantil influenciando, principalmente, o potencial de reproduzir ou desenvolver em relações afetivas futuras o mesmo padrão agressivo de relacionamento com que conviveu (aprendeu) na infância. Sem compreender o processo histórico, as determinações materiais e as características socioculturais que determinam as bases objetivas e subjetivas em que se assentam as diversas e perversas formas de violência estabelecidas na nossa sociedade, o debate jurídico e a criminalização limitar-se-ão as suas consequências, cumpre agir sobre as causas.



Saffioti (1997): Princípios normatizadores da sociedade-gênero, raça,etnia,geração e patriarcado.
Thompson (1995): Ideologia, cultura e assimetrias/desigualdades de gênero, raça e etnia.

2 comentários:

  1. Maria Luiza Tucci Carneiro20 de fev. de 2013, 20:05:00

    Caro Mário: texto emocionante, instigante e poético, ao mesmo tempo. Nos faz refletir sobre as construções de certos conceitos que, muitas vezes, acabam cristalizados, engessados pelas artimanhas do Poderque tem múltiplas facetas. Concordo com vc (e creio que também a saudosa Profa. Saffioti) que devemos agir sobre as causas e vejo que a educação é um dos caminhos possíveis. Reforço: a perversidade é perversa, não é mesmo ?

    ResponderExcluir
  2. Cara professora Maria Luiza;

    Obrigado! Fico lisonjeado com tamanha generosidade e gentileza! O que apenas demonstra a sua sensibilidade, humildade e nobreza. Sem duvidas, a perversidade é pior ainda porque é muitas vezes sutil - penso eu. Por outro lado, de acordo com a professora Saffioti, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, entre outros grandes e saudosos intelectuais-militantes, conforme a realidade seja histórica, politica e cultural, na democracia a educação é o seu fundamento e, assim, imprescindível para o exercício da cidadania.

    ResponderExcluir